quinta-feira, 24 de outubro de 2019

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Meu amigo,
O cansaço que me vai nas pálpebras só é superado pelo que me pesa nas sobrancelhas, pelo que hoje nem consigo dizer, pqp, palavrões fingidos. Devia continuar a história de como a Dona Placídia, depois de se despedir de mim e dos meus companheiros na região dos Hiperbóreos, desceu as escadas, seguiu em frente, virou à direita e desceu em direcção aos campos dos asfódelos onde as sombras dos antigos alunos parecem arrastar consigo os choros inconsoláveis das traumáticas mudanças de turma e outras tragédias gregas cujo profundo significado vai para além da minha filosofia e para além da extensão das minhas frases. É verdade que os meus textos abusam das extensões, derivações e outros divagantes diletantismos. Mas o que foi que aconteceu desde o momento em que a Dona Mónica me deixou, expectante em relação à devolução do telemóvel, até ao momento em que, vinda do inferno labiríntico onde mora o cadáver de Astérion, me viria a devolver o inconsciente depositário das minhas lamúrias, o canal de Suez das minhas soezes conversações sobre compras, apoios, faltas de material, grelhas de observação, e fotografias comprometedoras, como aquela em que apareço numa tourada com o Nuno Melo, disso pouco sei. Mas sei que demorou o tempo suficiente para o Tarkovski pôr um gajo a atravessar o caminho com uma vela constantemente a apagar-se e a recomeçar tudo de novo. Pasífae tinha-me garantido que o telemóvel, tendo sido encontrado por um aluno de cristianíssimo nome e hábitos pagãos, fora entregue, insepulto, nos corredores escuros onde a personagem de "Todos os Nomes" entrou, com um cordel atado aos calcanhares, sem notícia de ter voltado. Acreditando na promessa desta voz vinda das profundezas, esperei, qual Penélope, enganado como Ulisses pelos vãos gemidos dos manatins. Foi longa a espera. Até que bateram à porta. Não era neve, nem era leve a expectativa. Quando a hierática figura de Níobe me estendeu um ecrã negro que descera, sem dúvidas, ao inferno. Tomei o pobre corpo flagelado do espelho de obsidiana. A morte parecia triunfar atrás das fendas vidradas que se estendiam por toda a superfície. Os gritos demoníacos que teriam causado o prejuízo pareciam ainda ouvir-se como um eco entranhado na tela. Só pensei, fdrm-m o crl do telemóvel. E caí, como os corpos mortos caem. 

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