terça-feira, 22 de outubro de 2019

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Amável leitor, ou o crl, 

Há gente mal intencionada que anda por aí a dizer coisas do crl sobre a forma como, supostamente, falo. Supostamente, uso termos de baixo calão. Claro que se baseiam apenas nas pequenas caganitas de humor com que salpico uma página de uma coisa prosopobibliográfica em grande parte responsável pela idiotice que hoje, graças a Deus, comungamos na paz infecta do senhor e que em breve degenerá numa senhora gangrena. As valas comuns esperam ansiosamente pelos nossos risos desencarnados. Por isso, vomitai as vossas mrdas, em tudo mais obscenas que os meus palavrões envergonhados e escritos na moderna e ambígua ortografia das consoantes insidiosas e ide prá cdm, como diria Jung, de forma mais uterina. 

Quem não me acusa, que eu saiba, de expulsar matéria fecal pela extremidade oposta à que a natureza destinou para esse fim, são os meus alunos que, estando eu, naquele dia memorável que decidi narrar segundo uma vaga, resumida e mal planeada concepção joyciana, com laivos sternianos e alguma prontidão garrettiana, pronto a começar a recolher respostas reveladoras da sua capacidade de compreensão das coisas institucionalmente designadas como necessárias à formação de um cidadão, se mostraram profundamente solidários quando se descobriu que o meu telemóvel estava noutro sítio que não nos sítios onde eu tinha estado. O que significa que tinha decidido dar uma volta, tendo aproveitado algum momento de distração da minha parte.
Haverá, por ventura, quem considere isto coisa de somenos. Perder um telemóvel é algo de baixa categoria. O telemóvel, dizem muitos dos meus colegas professores, é o instrumento infernal que está a devorar a capacidade de compreensão, expressão e atenção das crianças. Eu penso que haveria muita razão nisso tudo se os mesmos professores, com ou sem presença nas redes sociais, não demonstrassem profunda afinidade com a vacuidade mental do Medievo Renascimento que marcará as próximas décadas.

Os meus alunos, sabendo que o aparelho com que registo as suas cintilações de sabedoria e complementares momentos de dívida e distracção, rapidamente se predispuseram a vasculhar a escola toda. Coisa desnecessária, que os meus caminhos, além de previsíveis, são limitados. Assim são as veredas do justo. Procurou-se onde tinha estado. O meu telemóvel, com as rachadelas do costume, tinha dado sumiço. E seria aqui altura de, de forma joyciana, dar palavra ao próprio telemóvel. Deixar Ulisses à sua sorte, entregue às almas dos companheiros prontos a enfrentar Cila e Caríbdis, e seguir por alguns momentos a viagem paralela de Telémaco. Não me atrevo a tal, não por falta de arte e manhas, mas por por falta de minutos. Entretanto, este texto, denso e de repelente erudição já deve ter feito mais pela solidão das minhas palavras que todos os palavrões que roguei às naves de brancas velas, enfunadas por sopros alheios aos da minha vontade, onde Agamémnon seguia em direcção ao seu fatal destino. Inspirei e disse aos meus alunos que, à tarde, não estaria em condições para dar fim a um ansiosamente esperado banquete circiano marcado para a tarde. E foi grande a desolação.

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