sexta-feira, 14 de setembro de 2018

José Saramago ou O Limbo

Foto de  Pedro Soares ©

O seguinte texto foi publicado por mim a 12 de março de 2010, no anterior "Da Condição Humana". Decidi ressuscitá-lo por razões que tornarei públicas em breve:

Seja por razões políticas, seja por razões religiosas,  seja pela falta de pontuação, seja pelo estilo, seja por razões de residência, seja por razões conjugais, seja pelo formato da cara, seja pelo tom da voz, seja pelo solipsismo, seja pela arrogância, seja pela Fundação sita na casa dos bicos-de-obra (para não fugir ao trocadilho fácil), há pouca gente em Portugal a gostar de José Saramago. Eu, por mim, não tenho (quase) nada contra o senhor. Gosta de cães. Preocupa-se com as pessoas. Preocupa-se com ele mesmo (que é uma pessoa, até prova em contrário). Escrevia bem (hoje, já nem por isso, mas, por vezes, ainda tem lampejos de génio) e foi, talvez, o escritor que mais me influenciou depois de John Steinbeck (pronto: e depois da Enid Blyton, honra lhe seja feita). Um dia escrevi-lhe um texto que, das duas, uma: ou nunca lhe chegou às mãos, já que antes de lhe chegar alguma coisa, há um crivo de pessoal da Fundação que decide o que é que José quer ou não quer ler, ou chegou-lhe, realmente às mãos e o senhor, solenemente, ignorou as minhas palavras. Era a respeito da Wikipédia e de uma referência que este autor fazia a certa altura, no seu Caderno, a este grande feito da contemporaneidade que, apesar de não ser, hoje, tão maltratado como nos tempos áureos em que eu muito lhe dei muito do meu tempo, ainda hoje é, na minha miserável opinião, maltratada de forma injusta e mal informada - ainda que seja, eventualmente, também defendida de forma inepta e mal formada. O texto foi este:
Chamo-te José e trato-te por tu porque convivo contigo desde o momento em que descobri "O Memorial do Convento" na biblioteca da escola e, perdido na filigrana de pedra e sangue das tuas palavras, descobri uma forma de tocar o sagrado, mesmo quando este nos aparece como uma nuvem fechada sobre si mesma. Sempre meu companheiro de oração ao Deus desconhecido que se entrevê através das réstias de bondade e vontade no ser humano, tive-te sempre por amigo, e como amigo chamo-te pelo nome, não que Deus te deu, mas que se não fosse Deus, não terias, porque se "Deus acrescenta" é o teu nome em hebraico, outro nome terias se ninguém acrescentasse Deus ao mundo. E, tendo, como é natural, as minhas diferenças de opinião a  respeito de pormenores na paisagem, creio que partilho contigo a mesma estrutura linguística íntima com que narras o mundo e eu o leio.

Tenho lido com regularidade o teu Caderno e, ao deparar-me com uma passagem sobre "O Corpo de Deus", leio, a certa altura uma passagem que me entristeceu, como é natural que nos entristeçamos quando um amigo troça de outro nosso amigo. Dizia "E nada de pôr-se com dúvidas sobre a divina presença na pastilha ázima como sucedeu a um sacerdote chamado Pedro de Praga, no século XIII, não seja que se repita o tremebundo milagre de ver a hóstia transformar-se em carne e sangue, não simbólicos, mas autênticos, e ter de levar outra vez a sanguinolenta prova em solene procissão para a catedral de Oviedo, como complacentemente no-lo explica Wikipedia, fonte a que neste difícil transe tive de recorrer." Não é sobre o milagre da hóstia que te queria falar, mas da complacência da Wikipédia a que, em difícil transe tiveste de recorrer. Leitor de Borges, pensei que te fosse fácil compreender a beleza literária própria deste poema-fonte que é a Wikipédia. Provavelmente, tens razão para estar descontente com uma enciclopédia em que o artigo que se centra na tua pessoa tem passagens de duvidosa intenção e não é, de todo, um artigo decente e ao nível do homem que és. Mas como homem que és, e com os defeitos que tens (que também os tens, creio eu que até aos teus próprios olhos), mais os defeitos que Deus te acrescenta pelos olhos de quem contigo não partilha a mesma linguagem íntima, é inevitável que a estrofe a ti dedicada, naquele poema por vezes monstruoso que se chama Wikipédia, seja, em determinados aspectos, de fraco calibre. A Wikipédia, como bem deves saber, pode ser escrita por qualquer pessoa. E isso é monstruoso aos olhos de qualquer pessoa que acredita no poder sagrado das palavras enquanto formadoras de vontades e guias de sensibilidades. Acontece que, tal como leio e continuo a ler Saramago com o respeito profundo que o mais sábio dos amigos nos merece, eu também aprendi a amar as palavras estropiadas da Wikipédia e sinto sempre que alguém está a perder algo de profundo quando passa pela Wikipédia com o desdém que um texto mal escrito inspira aos cultores da palavra. A Wikipédia não tem um autor, é certo. Tem muitos. Todos aqueles que aceitam o repto de carregar no botão "editar" e se decidem a modificar o texto, conformando-o à sua vontade. Neste processo, sucedem-se séries de camadas que, como num corte geológico ou no estudo aprofundado de um palimpsesto, revelam a força da vontade dos leitores sobre as palavras que se moldam como plasticina. Estou de acordo que deste processo jamais nascerá, definitivamente, um texto digno de se ler como se lê Saramago. Eventualmente, algum leitor de génio poderá deixar uma obra prima soterrada em novas edições de outros autores, porque ali não se procuram obras primas da literatura, mas, apenas, informação e imparcialidade. Fraco objectivo, meta aborrecida, dirá, provavelmente. E eu concordo. Meta aborrecida, mas o caminho... poderia ser espantoso se, cada vez mais, em vez de julgarmos ver "complacência"  num artigo bem ou mal escrito da Wikipédia, víssemos o convite à nossa própria participação daquele cadavre-exquis que vai muito além do sonho mais delirante de um surrealista. Aconselho-o a pegar num artigo da Wikipédia e que carregue na "história" do mesmo e explore as versões antigas desse artigo, se as tiver - isto é, se não for um artigo com presunção a uma perfeição que apenas gerará o desinteresse de alguém em reescrevê-lo. Aconselho-o a ler a discussão desse artigo (o que os escritores-editores disseram sobre o artigo, sobre a forma de o escrever, os defeitos que apontam à veracidade, verificabilidade e imparcialidade do que nele é exposto); aconselho-o a tentar melhorar um artigo, reescrevendo-o; aconselho-o a ficar irritado com os outros editores que talvez venham a censurar a sua contribuição e que tentarão (a si, José Saramago!) ensiná-lo a escrever lá segundo as normas definidas pela comunidade. Uma comunidade de pessoas que, não sendo poetas (ou talvez o sejam em outros lugares que não lá) trabalham como formigas para juntar palavras que ensinem. Uns com um propósito, outros com outro. Uns mais preocupados do que os outros com os erros, omissões e vandalismos a que as palavras por alguns carinhosamente lá depositadas, são submetidas. Aconselho-o a reavaliar as palavras que lá encontrar. Há, com certeza, imensa informação (pouca, ainda, na nossa versão lusófona, que muito boa é, sabendo eu o quão reduzido é o número dos seus autores) que por vezes nos dá jeito. Se é certo que há erros (propositados ou não) disseminados na Wikipédia, é quase certo que a nossa capacidade crítica (se a tivermos) saberá destrinçar o trigo do joio (a não ser, claro, que estejamos a escrever uma tese de doutoramento onde não se admitirão o descuido de pequenos erros, ou erros curiosamente engendrados por espíritos que, como o revisor de "História do Cerco de Lisboa", decidem apôr um não à História para que dela nasça uma discussão). Eu defendo a Wikipédia. Dei horas e horas da minha vida à escrita de artigos que, sem qualquer contribuição financeira, poderão ser usados por qualquer pessoa no mundo e que, creio eu, poderão ajudar a esclarecer mais pessoas e a melhorar a sua vida. É por isso que o teu comentário algo frio a um texto que não guarda em si qualquer complacência, mas a nuvem aberta de uma vontade aberta a outras vontades, me fez doer um pouco o íntimo. Como se alguém troçasse de um poema de Camões por não compreendê-lo.

Ora, hoje li uma crónica de Miguel Esteves Cardoso sobre o massacre (ministra Canavilhas dixit) de livros perpetuado por algumas editoras, onde é dito a certa altura:

José Saramago – mau escritor mas boa pessoa, na minha miserável opinião – foi enganado.

Ri-me a ler esta passagem. O MEC sempre teve jeito para descobrir aquilo em que ninguém tinha pensado. José Saramago mau escritor, mas boa pessoa. Creio que qualquer pessoa decente prefere ser boa pessoa a ser bom escritor. Eu valorizo, de longe, mais a bondade que o talento. Ora, Saramago tem a bondade de um ser humano vulgar e mediano. Não é santo nem herói nem a isso se candidatou alguma vez. Irrita-se como qualquer pessoa, é arrogante como qualquer pessoa, ignora os outros como qualquer pessoa. Há uma passagem qualquer de um dos seus cadernos em que este se censura a si mesmo por não se ter dirigido a qualquer um dos afro-americanos que viu à frente quando estava perdido em Nova Iorque, há uma passagem em que decide pintar o chão da sua casa com chá, há passagens de pura humanidade naquilo que escreve. Humanidade cheia de uma espiritualidade chamada bondade. E para se ser bom não é preciso muito. Basta ser uma pessoa vulgar, com momentos maus.

Saramago é uma pessoa vulgarmente boa e vulgarmente má. Ninguém retirará da minha vida as horas em que meditei sobre a sua obra - horas que me fizeram tal como sou (e, provavelmente, que fizeram grande parte daquilo que vale a pena naquilo que sou). Mas, hoje, não já o admiro como admirava. Até porque também sou uma pessoa vulgar. Vulgarmente boa e vulgarmente má (e escritor de duvidável qualidade, digam o que disserem os meus amigos que meus amigos são apenas e através daquilo que escrevi). E como pessoa vulgar que sou, sinto mágoa quando sou ignorado. E detesto pessoas que se isolam em pedestais. Hoje posso dizer que continuarei a ler Saramago... mas não já como antes. Saiu do meu Paraíso e não lhe dou entrada no meu Inferno.