sexta-feira, 11 de outubro de 2019

1

Já fui do tempo em que os adolescentes escreviam diários em caderninhos com cadeado facilmente violável. Hoje, as Anne Frank estão condenadas à dupla morte do corpo e da palavra. A palavra escrita deixou de ser sagrada. Há formas de sacralizar ou conceder uma validade extraordinária ou contratual à palavra, mas não passam necessariamente pela escrita. É por isso que a poesia se tornou num passatempo anacrónico. Podemos profetizar, mas não haverá quem dê crédito às profecias. Podemos confessar, mas todos pensarão que estamos a ser irónicos. O mundo pode estar em estertores de agonia terminal, mas, segundos antes do fim, alguém terá feito circular uma piada genial sobre a situação. Vamos morrer todos de uma vez, sem deixar ninguém, nem para semente, mas ao menos morremos alegres. Não felizes, mas a rir. E morremos com piadas curtas. Pensamentos curtos. Curtas metragens. Tudo tem de ser curto, menos os pénis. O que há de bom nisto tudo, é que podemos escrever textos longos sem cadeado. Ninguém vai querer ler. E isso é bom. Apeteceu-me voltar a escrever. O quê, não sei. Mas apetece-me escrever coisas que ninguém lê. É a minha maneira de fugir aos cadeados que não são apenas violáveis como parecem gritar por um pé de cabra. Vá à metáfora até ao rebordo da minissaia, curta como um tweet, de quem estava mesmo a pedi-las.

Sem comentários:

Enviar um comentário