quarta-feira, 4 de julho de 2018

Uma pastelaria em Tóquio, de Naomi Kawase



Com intenções declaradamente didáticas, "Uma pastelaria em Tóquio" é um daqueles objetos cinematográficos singelos que, despidos de qualquer pretensão inovadora, nos ajuda a mergulhar na paz triste mas consoladora das histórias que cruzam solidões. Um homem com um passado e uma culpa; uma jovem de futuro incerto e uma personagem que enche todo o filme: uma senhora de idade avançada, com marcas de doença nas mãos, olhar e gestos infantis, simultaneamente comedidos e ingenuamente expansivos, maravilhosamente interpretada pela atriz japonesa Kirin Kiki. Três solidões que se cruzam sob a sombra luminosa das cerejeiras.

É também um filme sobre comida. Sobre slow food. A comida que conversa com o cozinheiro enquanto sofre as sucessivas mortes alquímicas em direção ao conforto aconchegante e revelador do ato sagrado de comer. 

Didático, portanto, nas suas intenções de humanizar aqueles que, deformados exteriormente por uma doença cruel e empurrados para o exílio das gafarias, podem ter tanto para ensinar e tanta beleza para dar ao mundo quanto o mais iluminado dos mestres. E didático pela simplicidade direta e linear com que ensina o respeito, de traços tão marcadamente nipónicos, com que se deve tratar aquilo que fazemos e aquilo que comemos. O respeito que devemos à vida.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Reabilitação e Fraternidade, de Elaine McMillion Sheldon


Elaine McMillion Sheldon é uma cineasta norte-americana nomeada este ano para um óscar pela curta-metragem documental "Heroin(e)". Em "Recovery Boys" ("Reabilitação e Fraternidade"), mais recente e disponível na Netflix, volta a pegar no tema da toxicodependência e no esforço, por vezes inglório, de quem tenta ajudar os outros a saírem do universo paralelo de um paraíso artificial de força avassaladora e onde não cabe a presença dos laços afetivos a que chamamos de amor. É uma visão desencantada e as personagens que enchem o filme não são objetos cinematográficos particularmente interessantes. Não o têm de ser. São pessoas, limitadas na sua própria luta e em confronto com as suas culpas e a sua impotência, não têm tempo para serem personagens interessantes para os outros. Nem a sua dignidade de seres humanos, donos da sua esfera privada, permite mais do que conhecer pela rama a complexidade das pulsões que os arrasta, pendularmente, entre a sobriedade e o desejo do prazer injetável.

Acompanhando a sua luta durante alguns meses, num programa de reabilitação que alia o programa de 12 passos com a vida e a rotina de trabalho rural, numa pequena cidade da West Virginia, o filme podia bem ser resumido a uma curta-metragem. Logo no início há uma frase interessante: "pensava que era assim que se vivia. Não sabia que havia gente a viver sóbria". Mais à frente, a evolução do conceito de amor, afetividade e laços familiares é bruscamente destruído por outra frase brutal e insensivelmente colocada: "tenho o amor e mais nada". E percebemos o abismo de indiferença que separa a não-ficção da nossa necessidade egoísta de ver um bom filme. Que não o é. Nem poderia ou deveria ser.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

A morte heroica de Federico Garcia Lorca


A suposta fotografia histórica do fuzilamento de Federico Garcia Lorca.



Ultimamente, tenho verificado um acréscimo, no que diz respeito à divulgação de informação falsa, entre as pessoas que defendem as coisas acertadas. Defender a escola pública é acertado. Defender a liberdade de expressão e de associação cívica e política é acertado. Defender uma cultura livre de crueldade gratuita, incluindo sobre animais, é acertado.

Penso que é um sinal de cansaço. Quero acreditar que é apenas um sinal de cansaço.

Os exploradores, os egoístas, os moralistas religiosos, os fariseus e os saduceus da nossa sociedade, vulgarmente disfarçados de conservadores e, por vezes, de libertários (justamente designados de liberotários por quem não os grama, como eu), são peritos nesse género de corrupção do imaginário coletivo. Porém, a esquerda parece estar a ser ocupada por esta doença da mentira útil.

Não contem comigo para tal peditório. Uma mentira é o contrário da verdade. Eu dou cara pela verdade. Se houver verdades inconvenientes, terei tempo para nelas me angustiar e nelas me calar. Não me calhou tal martírio.

Hoje deparei-me com uma foto extraordinária no Facebook. Dizia que era uma foto histórica do fuzilamento de Federico Garcia Lorca.

Agosto de 1936. O suposto Federico Garcia Lorca, muito mais parecido com o Gabriel Garcia Marquez, aparece com o punho direito fechado a “declamar” o seu último poema. Causa-me uma tremenda confusão esta necessidade de tornar os últimos momentos de algumas personagens em atos de bravura estética, como se estes últimos momentos definissem a pessoa. Federico Garcia Lorca pode ter chorado baba e ranho. Muito dificilmente terá morrido naquela pose. Não é isso que interessa. O seu assassinato foi um ato covarde. Pouco interessa, aliás, as razões que levaram ao mesmo, exceto as que se prendem à ignorância e ao totalitarismo. Se Lorca foi corajoso nas suas escolhas e no seu caminho de liberdade, pouco interessa como morreu. Pode ter morrido de cabeça erguida. Acredito que sim. Mas também pode ter morrido a suplicar. Quem o sabe? Não há registos de tal triste momento.

A sua morte pode ser dramatizada. A sua morte pode ser dada como exemplo. Pode ser romanceada. Quando morremos, deixamos de ser pessoas. Passamos a ser aquilo que deixamos. Lorca deixou muito. Deixou tanto, que não precisa de fotografias falsas da sua morte. Digam que aquela fotografia é inspirada em Lorca. Porque é. Inspirada nele e em outros que morreram pela liberdade e pela verdade. Mas não passem a ideia, sequer, de que aquela imagem é fiel a um acontecimento histórico trágico e que merece o nosso respeito. Isso começa por fazer-se respeitando a verdade.

A foto em questão é apenas uma imagem retirada de um videoclipe de uma banda espanhola chamada Boikot, numa canção que dá pelo nome de 'Lágrimas de Rabia” e que é, de facto uma homenagem, a quem, como Lorca, morreu às mãos do obscurantismo. Podem verificar isso aos 2 minutos e 14 segundos.


Um lugar silencioso, de John Krasinki


"A quiet place", "Um lugar silencioso", de 2018, realizado e protagonizado por John Krasinski e pela sua também companheira na vida real, Emily Blunt, exige do espectador a absoluta suspensão de qualquer sentido de verosimilhança. Basta percorrer com os olhos algumas das críticas dos utilizadores do IMDB para, depois de visto o filme, confirmarmos as falhas óbvias do argumento no que diz respeito à sua compatibilidade da história com as mais básicas noções de bom senso de uma família sobrevivente num mundo devastado por criaturas cuja origem não é, jamais revelada. E pouco interessa. Podemos, constantemente, perguntar porque é que as personagens agem de forma tão inconsciente e leviana nesta ou naquela situação, mas o filme não pretende ter esse género de consistência. O objetivo é a absoluta alienação do espectador. O objetivo não é adentrar nas profundezas da alma humana, mas apenas, sentir o medo, de forma onírica. Sentir o silêncio e a ameaça constante de um pesadelo. Nem todos os objetos artísticos têm de, forçosamente, revelar algo, e estou bem convicto de que os sonhos não revelam nada sobre ninguém, a não ser de forma muito distorcida. Porém, quantas páginas de elevada literatura e obscura ciência se lavraram a partir deles? Quantas correntes artísticas, antes ou depois do Surrealismo, irromperam da pedra e do pergaminho?

Não é, porém, um filme surrealista. É um pesadelo bem filmado. Bem contado. E que, acabado, nos devolve inteiros. Não é pouco.

A poesia inunda os passeios, de Santiago Montobbio

Santiago Montobbio
A poesia inunda os corredores, as salas de aula,
as ruas, as alcovas. A poesia
é tão livre como um pássaro
e não se resiste a deixar de ser mistério.
A poesia povoa-nos, inunda-nos, penetra-nos.
Pertencemos à poesia. A terra é poesia.
Mas também o é a noite, o medo,
as fauces do tempo e o esquecimento.
Também a poesia é seu signo.
Se abandono a poesia, do humano abdico.
Mesmo que seja no silêncio que nela vivo.

Santiago Montobbio
La poesía es un fondo de agua marina


Santiago Montobbio é catalão, nascido em Barcelona em 1966. Formado em Direito e Filologia Hispânica pela Universidade de Barcelona. Professor de Teoria da Literatura e Crítica Literária da Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED).  Estreou-se como escritor na "Revista de Ocidente" em maio de 1988. 

Autor de livros de poesia reconhecidos como "Hospital de Inocentes" (1989), "Ética confirmada" (1990), "Tierras" (1996), "Los versos del fantasma" (2003) e "El anarquista de las bengalas" (2005). Ocupa a vice-presidência espanhola da Association pour le Rayonnement des Langues Européennes (ARLE), de Neuilly-sur-Seine, sendo correspondente em Barcelona da sua revista Europe Plurilingue. Foi finalista do prémio Quijote 2006 da Asociación Colegial de Escritores de España, atribuído ao melhor livro publicado no ano.

Sobre o seu primeiro livro, "Hospital de Inocentes", Juan Carlos Onetti escreveu que, de modo misterioso, sentia que este coincidia com o seu estado de ser quando escrevia. Camilo José Cela considerou os seus poemas “belos e profundos”; Ernesto Sabato disse que eram magníficos; Miguel Delibes "invejou" a força do seu verso e Carmen Martín Gaite comoveu-se estranhamente com estes poemas saídos de um poço de escuridão e verdade.

Coautor de um livro de arte, "Els colors del blanc" (2008) com o pintor Lluis Ribas. As suas conversas com a sua tradutora e espcialista na sua obra, Amaranta Sbardella també, foram publicadas sob o nome "Escribo sobre el aire del olvido" (2012). No Brasil foi publicada em 2010, pela Ateliê Editorial, uma antologia ("Onde treme o nome - Donde tirita el nombre") traduzida por Fernando Fabio Fiorese Furtado. 

Depois de vinte anos de escassa produção, em 2009 voltou a escrever com um vigor redobrado, dando a conhecer uma vigorosa tetralogia constituída por "La poesía es un fondo de agua marina(2011), "Los soles por las noches esparcidos" (2013), "Hasta el final camina el canto(2015) e "Sobre el cielo imposible(2016). Em 2012 ganhou o prémio Prix Chasseur de Poésie, da editora francesa Le Chasseur ábstrait éditeur.

Créditos fotográficos: La nave de los locos

domingo, 1 de julho de 2018

Quando os justos abandonam o caminho da verdade

A parábola dos cegos, de Pieter Brueghel, o Velho

Ainda ontem voltei a escrever neste blogue apenas porque estavam a espalhar mentiras. Independentemente de o fim ser louvável (a valorização da Educação Pública), quando os meios justificam os fins, há que utilizar a balança da consciência. A Educação Pública serve para educar os jovens (e os adultos também, embora de uma forma mais pontual ou indireta) no sentido de serem melhores cidadãos e valorizarem a verdade e o conhecimento. Ver professores a partilharem mentiras, seja por opção propagandística (isto é, mesmo desconfiando que é mentira) seja por inocência (que não é desculpável: a educação serve para abrir os olhos e não para adormecer a sociedade nos narcóticos da ingenuidade) é perder por completo a confiança naqueles que nos deviam guiar. Está a decorrer uma luta pela justiça. Os professores pedem justiça e pedem reconhecimento. Ora, eu sou professor. Mas não me ponho ao lado de quem utiliza mentiras para chegar a um fim, por mais justo que seja (a não ser em casos excepcionais, nomeadamente quando há vidas em jogo, como numa guerra).

O STOP, uma organização de professores onde todos estão integrados voluntariamente, nem que seja à força, decidiu partilhar este este texto:

"Desculpem o longo desabafo mas estava atravessado ...A vida ensina-nos a mudar de ideias ... e felizmente com o avançar da idade fazemo-lo cada vez mais tranquilamente, sem medos e complexos . Não sou Professor, mas sempre tive ligado às Escolas por questões profissionais e para além disso sou Pai de 4 filhos, um deles licenciado como Professor pela ESE LX (não exerce ... após o estagio ficou de tal forma descontente que por enquanto seguiu outro caminho) e outros três nos 11º, 9º e 6º ano. Critiquei muito esta greve, não pela legitimidade e pela causa dos Professores, porque isso é mais que óbvio e todos estamos com eles, mas pelo sentido de oportunidade dessa greve que prejudica essencialmente alunos e familias. Critiquei um pouco a quente e emocionalmente, influenciado também porque um dos meus filhos estar bastante dependente das notas internas e por sugestão da Direccção teve que realizar exames a disciplinas que ele sabe que irá passar. Mas volvidas 3 semanas (ainda não sei as notas internas) fui reflectindo, fui conversando com muitos Professores entre eles amigos que me são sempre queridos e dos quais valorizo muito a sua opinião , fui tomando conhecimento mais claramente quer das razões como de todo este processo de greve (não gosto e confio em sindicatos mas o STOP parece fugir desse modelo ... esperando que como habitualmente quando ganham força e influência, não se acomodem ao poder e não se tornem mais uns "paus mandados" desse mesmo poder) e confesso que está a ser para todos nós ... um enorme exemplo de cidadania, de intervenção civica, de determinação e de luta pelos nossos legitimos direitos ... mas também um braço de ferro de gente que trabalha , que se dedica em condições muito dificeis ... contra uma classe politica cada vez menos transparente e cada vez mais incompetente ... insensivel aos problemas e aspirações de todos nós. Mais do que uma luta dos Professores esta está a tornar-se uma luta de todos nós por solidariedade e devia servir de exemplo para outras causas e para tirar do marasmo um povo muito feliz e determinado mas que cada vez mais , fruto do descontentamento e da incapacidade de mudar as coisas, se tornou completamente passivo aos atropelos das desgovernações que vamos tendo. E relembro entre outras, por exemplo, a classe policial que é das mais prejudicadas e esquecidas ... que sirva de exemplo para que determinadamente sem cedências por falsas promessas lutem pelos seus direitos. Pois bem para finalizar, considero esta greve uma enorme lição de cidadania e intervenção civica para os meus filhos ... esperando sempre que lutem pelos seus objectivos e direitos com tal determinação e união. Como Pai e Cidadão apoio totalmente as motivações dos Professores e espero sinceramente que esta luta acabe com uma grande vitória da democracia, porque mais do que a habitual luta de sindicatos que também jogam nestas águas turvas do poder e braço de ferro com o Governo, esta é uma luta de pessoas que lutam pelo que lhes pertence e isso é mais que justificativo e legitimo. Finalizo ... e mais uma vez desculpas pela extensão, mas sinto também que é uma forma de agradecer aqueles que todos os dias lutam também pelo melhor para os meus filhos. Obrigado!"

Este texto é forjado.
Tenho provas? Não.
Mas quem é este pai que tem medo de assinar por baixo de um texto em que se manifesta solidário com os professores?

E se for verdade? Se for verdade, é pior. Porque professores estão a partilhar um texto apócrifo sem qualquer garantia de verificação da sua autenticidade. Professores estão a contribuir para este clima onde tudo o que aparece escrito passa a ser verdade se for a nosso favor e a ser falso se for contra nós. Pela dignidade. Pelos professores. Não partilhem aquela opinião, a não ser que o "pai", isento (e que não seja ao mesmo tempo professor) apareça a dar a cara. Apoios anónimos valem tanto quanto uma injúria.