Deixei de escrever poesia.
A árvore que dá cachaça
Considera-me água corrente.
E ninguém sente a falta dela.
Paz à sua alma.
Deixei de escrever poesia.
A árvore que dá cachaça
Considera-me água corrente.
E ninguém sente a falta dela.
Paz à sua alma.
Em Marce, a escritora baiana Gláucia Lemos, atraída pelos sons e pelo ritmo selvagem e encantatório da natureza diabólica do ser humano, tem a coragem de se adentrar pelo corredor escuro do egoísmo humano. Mas, tal como a personagem que dá nome ao romance, prefere deixar algumas portas fechadas. Em termos formais, o enredo não dispensa algumas revelações com sabor a literatura de cordel do século XIX ou às comédias de Beaumarchais e, tal como nestas, a rede humana de coincidências e laços de sangue insuspeitos são reveladores de uma ordem social de aparências que se vai esboroando perante novos caminhos de liberdade.
É um romance onde a um sentimento prevalecente de libertação feminista se contrapõem momentos de medo, omissão e cobardia. Uma cobardia supersticiosa já entrevista num espelho que serve de subtítulo ao livro. A cobardia de quem vê alguém morrer devido ao nervosismo negligente da autoridade e aceita placidamente a injustiça com um mero amuo de despeito, a cobardia de quem suspeita de um crime pavoroso e prefere fingir que tudo está bem. Uma cobardia que varre para debaixo do tapete tudo o que é inconfortável e remete Marce, esta personagem central de um bildungsroman no feminino, para um desconcertante estatuto de ambiguidade. Exilada no limbo de uma praia remota, tanto paraíso quanto inferno. Ou, como se diz a certa altura, num paraíso a que se acede por meio dos caminhos do inferno - quando, bem diz a doutrina, quem entra no inferno não pode acalentar a esperança de lá sair. E Marce não sai do inferno começado nos seus amores falhados. A verdade deste romance - que cada romance só vale pelas verdades que encerra nas suas estudadas mentiras poéticas - está exatamente no caráter ambíguo de uma personagem que não é um modelo de virtudes. Primeiro ingénua, à conta da paixão dedicada a um torpe espécime de macho, Marce evolui ao longo da narrativa, torna-se mulher liberada - expressão utilizada desdenhosamente por outra personagem não menos liberada no que diz respeito a costumes e à expressão tendencialmente plena da sua sexualidade. Tendencialmente porque a alegoria é clara: só através da perda se podem atingir patamares mais elevados de maturidade. Quando, na narrativa começada in media res, Marce se volta a olhar no espelho chinês dos maus presságios, devidamente ornamentado com um ouroborus, símbolo da autofecundação e da solidão enquanto elemento definidor do eu, o que Marce encontra é aquilo que falta, aquilo que se perdeu. Aquilo que, perdendo-se, a completa enquanto mulher. Marce, personagem central de um bildungsroman, como já disse, não evolui ou se educa através do confronto com teorias e sábios gurus, mas através da perda. À medida que o seu mundo vai estreitando, paradoxalmente, maior é a linha de costa que os seus pés descalços percorrem em direção ao desvelar dos medos e das superstições, abrindo-se-lhe as portas dos simples que a acolhem num meio onde a consciência do mundo ainda se encontra em estado de fábula, numa névoa onírica que parece sair de outro livro de Gláucia, Luaral.
Mas se Marce é, ao nível estrutural, o centro nevrálgico desta história, a família de onde foi desterrada é a personagem moral. Uma família que é, acima de tudo, uma instituição social que, ainda dando os primeiros passos no que diz respeito à aceitação das liberdades individuais, está ainda minada pelo pensamento puramente egoísta e enformado na luta pelo poder. O amor é apenas um capricho ao qual se cede, dada a força inexorável da pele contra pele e a sua transmissão de um subtil veneno onde não há lugar para paixões amenas ("A química da pele é uma porta escancarada para esse vírus miserável que une as criaturas."). Cada ato de amor, para cada elemento daquela família que se desmorona é, também, um ato de conversão. Uma mudança de fé.
Em resumo, um livro que, de acordo com a receita de Stendhal, é um espelho ao longo de um sinuoso caminho. Um espelho que tanto reflecte como se nega a tudo abarcar. Porque somos assim. Incompletos e limitados pelas molduras e pelos agouros e presságios, bons ou maus, com que enquadramos o nosso olhar.
Um tal de Luís Vargas, obviamente do PS, ou que, sendo de esquerda é burro o suficiente para só bater em metade da coligação que governa o país, tem, porém, a inteligência de dizer coisas que são óbvias. Talvez não seja inteligência. Talvez seja apenas esperteza e vontade meritocrática de substituir o coiso dos corações... O.… Edson Ataíde. Pois.
Finalmente olhaste para mim,
Olhos nos olhos,
De sorriso rasgado.
E
Ignorando
Vénias,
Ouviste-me,
Simplesmente.
Os números sobre as pessoas:
Idade, residência, camas e violência,
Vão sendo lançados.
E os cidadãos, apesar da logística,
Com bons resultados em estatística,
Entalados em desemprego, inflação, dívida,
E uma alta taxa de alfabetização
E baixa literacia,
Encavalitando-se nos números,
Fazem democracia.
Lançam fundamentadas opiniões.
Os números não mentem.
- Ai que não mentem!
- Não mentem, não!
As palavras sim. Especialmente
As que vêm encavalitadas em números,
Embrulhadas em papel de opinião.
Depois, há a Razão.
E essa só interessa a quem dos números
Da mortalidade, subnutrição, obesidade
E falta de educação,
Não faz outro escrutínio
Ao consumo de alumínio, cimento e alcatrão,
Que não o que não se deduz
De um incalculável cagalhão.
Que o Santuário do Sameiro é um monumento ao fascismo quase toda a gente sabe. Hoje, chamou-me a atenção os pés gastos da apocalíptica Senhora. Os devotos peregrinos passam as mãos, rente à cabeça da serpente calcada e persignam-se perante tamanha autoridade. Contudo, olhando mais abaixo, apercebemo-nos que não é apenas a serpente a sofrer com o peso da imaculada. Os anjinhos são puras personagens de um filme de horror. Crianças presas num suplício que a sua inocência não consegue explicar.
Talvez seja romantismo primário, mas onde os Bracarenses vêem um Bom Jesus de cara lavada vejo eu pedra erodida. Os profetas e as figuras alegóricas nem sempre se conseguiam identificar debaixo dos líquenes neles depositados por um século de humidade minhota. Agora, o granito aparece no seu estéril resplendor fazendo lembrar cimento, e custa-me a crer que esta violenta raspagem não encurte a vida das escultóricas figuras, como o São Longuinhos, rodeado de andaimes, pronto para a lavagem.
Com a mesma densidade
Dos caminhos que me levam
Até ti.
Com esta mesma verdade
Dos desejos que se elevam
Até ti.
Salva me
Esta só expressão,
Segue o meu corpo e flutua:
Nua,
Sobre a escuridão,
No correr dos nossos lençóis
E no leito do meu curso
De onde sobe em suspensão
E em mudo discurso.
E o lodo a meus pés
Já se entrega à morte.
13 de junho de 2006
Juntas no mistério
Água, luz e CO2
E, depois,
Como serpente emplumada,
Uma lágrima de nada
Contendo o que em cima existe
Na profunda claridade
Dos olhos de Deus
E o que em baixo desiste
Sob a conversão forçada
À paternidade
Dos deuses alados
Mortos noutra solidão.
Juntas no mistério
Tanto nuvens como pedras.
E no cemitério
Daqueles que não nasceram,
Sepulturas por abrir
Igualam-se em inquietude
Ao sossego manso
Da eternidade
Do ventre da Virgem.
Ergue-te, não durmas mais
Porque o efémero onde segues
Desemboca na Eternidade
De um doce sono.
Ergue-te,
Não chores se não és dono do jogo,
mas o Céu.
Ergue-te e ignora
Os lances celestiais que te deslocam.
Ignora o destino e ergue-te.
Não durmas mais.
O saco vazio do nada
Espera as peças dispensáveis
Ao recreio do Céu.
Ergue-te.
Ignora.
Não chores.
Em cada bago de arroz há uma lágrima.
E sendo a lágrima a mais poética
E lírica das secreções – em princípio, e sem indecências,
Em cada bago de arroz há uma rima em branco
E no prato, uma sentença.
Não há no arroz servido nenhuma indiferença
Ao franco sentimento de quem o come.
Que quem come arroz nota perfeitamente,
Em cada bago, como é concreta
A secreta dor da lama onde nasceu –
O arroz, e eu – nós todos, já agora.
Em cada bago de arroz há uma lágrima
Arrancada à casca escura e dura
Dos olhos que se recusam a chorar.
Mas é evitado.
Em cada bago de arroz,
Podes escrevê-lo
– Ainda que nem tenha por grande hábito comê-lo –
Em cada bago de arroz há uma lágrima.
Nascida e proibida de germinar.
É por isso que
Em cada bago de arroz há uma lágrima
Por chorar.
Mas em cada lágrima que me serves,
Perfumando as horas em que as choras
Com as marcas escuras que se desenham
Em arabescos de tristeza
Na tua face, há sementes
E flores escondidas no seu secreto embrião.
Em cada bago de lágrima
Descascado da casca onde te encerrei,
Eu sei,
Há uma semente
– A única semente –
Capaz de criar raízes no meu corpo
Com a violenta ternura da tua voz.
Porque entre nós,
Podes escrevê-lo
– Ainda que nem tenha tido por grande hábito comê-lo, –
Estará sempre pendente o beijo
Que falta dar.
Vi almas penadas a voar
e lanças espetadas nas estrelas
Em grupos de três, a sangrar...
Vi pétalas de lividez
Em grupos de cinco, a gangrenar...
Vi nos sonhos de quem morre
Aquilo que a vida enterra.
Vi as hastes vegetais irrompendo da terra parindo
Aloendros brancos
Símbolos eróticos da seiva
Da noite
E da morte.
Ouvi o sussuro da calmaria
E os passos de quem colheu o silêncio branco
Das flores que oferecem o doce odor do sono eterno.
Ouvi o sussurro da calmaria
E na vida que irrompe da terra parindo
Cheirei
Os alandros brancos
Brancos loendros
Aloendros brancos
Oleandros
Em grupos de três
Almas penadas a voar
Colhidas e escondidas na cabeceira de quem não quer acordar.