domingo, 29 de março de 2015

Sobre a Prosopobibliofobia

Prosopobibliofobia é a aversão profunda às redes sociais e, em particular, ao Facebook. O prosopobibliófobo recusa-se a encarneirar com gente que, muito egipciamente, venera gatos e faz festas ao diabo da estupidez. Assim é, de facto. O Facebook alargou os horizontes da partilha da estupidez e das vaidades vãs. Mas culpar o Facebook é destituído de sentido porque o problema está nas pessoas. Problema que já existia, mantendo-me dentro apenas dos limites nacionais, quando não havia mais que dois canais de uma televisão que, na altura, era do melhor que havia, comparando com a esterqueira que já se via fora de portas. Os portugueses entretinham-se com programas de qualidade. Viam filmes de jeito à quarta feira e comentavam-nos no dia seguinte com o padeiro. No segundo canal havia dança, ópera e filmes franceses da Nouvelle Vague. Havia pouco que ler. Por isso, lia-se o que havia, desde os livros da Enid Blyton aos pequenos folhetos do Apostolado da Oração. As pessoas entretinham-se com o que havia. E havia coisas boas. Mas a escolha era determinada pela própria limitação do campo de escolhas, reduzido a quase nada. As redes sociais são uma consequência inevitável do alargamento da capacidade tecnológica de comunicação entre seres humanos. Com um campo alargado de escolhas, cada indivíduo define-se, nas redes sociais, em função dos outros. Em função das partilhas e dos gostos. Nunca, como hoje, é possível categorizar os grupos sociais, que sempre existiram, camuflados numa aparência de unanimismo totalitário. Mas, desta paisagem humana ressalta também a complexidade das relações estabelecidas por um mesmo indivíduo. A exibição dessa informação causa um horror compreensível entre aqueles que temem a perda da pouca liberdade que ainda tínhamos, a devassa, por parte de organizações estatais, políticas, policiais e empresariais à intimidade de cada um. Mas o prosopobibliófobo esquece que essa devassa é já a estrutura básica da sociedade que começa agora a despontar. E que, a não ser que uma catástrofe de proporções bíblico-dantescas acabe com toda esta estrutura de informação avassaladora, estamos inevitavelmente e suavemente escravizados por ela. Fenómenos nascidos das redes sociais mostram, porém, que os indivíduos podem também utilizar esta subjugação para pôr em causa as estruturas do poder totalitário dos estados onde vivem. A ditadura do proletariado nunca viu um dia a nascer e, provavelmente, nunca verá. Mas a ditadura do prosopobibliófilo, o utilizador militante das redes sociais, é já uma realidade porque as próprias corporações que poderão utilizar as redes sociais para controlar o género humano são compostas e dirigidas por utilizadores que também usam estas redes sociais. Por isso, são influenciados nas suas decisões também pelo seu próprio comportamento individual. Tudo isto é monstruoso, mas é também humano. Genuinamente humano. Tão humano que pode bem considerar-se que não houve momento na história humana em que a liberdade individual tenha coexistido de forma tão pacífica e democrática com o controlo totalitário dos centros decisores do poder económico, político e judicial. Há uma democracia por osmose, em que os ditadores são movidos pelas tendências da opinião pública, de uma forma que nem nos sonhos mais delirantes do senhor Lynch (tenha ele sido William ou Charles) poderia ser concretizada. Há um poder ilusório das massas, é verdade. Mas a ilusão nunca foi tão real. Tudo isto é monstruoso, mas inevitável. É  um poder descontrolado e acéfalo, tentacular, efémero, simultaneamente caótico e organizado. E o prosopobibliófobo tem medo desta estrutura atmosférica nebulosa, tão previsível como o comportamento do clima. Um vídeo de gatinhos a brincar pode mudar o rumo dos acontecimentos como as asas das borboletas da teoria do caos jamais conseguiria mudar, de um modo tão rastreável quanto fugidio. E o prosopobibliófobo tem medo. E com razão. Mas não pode fugir à influência deste monstro. Mesmo fugindo dele, não se inscrevendo com um perfil formal no Facebook, comenta o que é comentado no Facebook, e o seu comentário é devorado por esta máquina, e assimilado ao seu esquema totalitário. O prosopobibliófobo julga que está fora, mas está lá. É tão carneirinho manso quanto os outros.

Donald A. Norman, em "The Invisible Computer" faz uma lista: Thomas Edison desprezou o rádio por não ter valor comercial; a Western Union desprezou o telefone porque este nunca seria mais "que um brinquedo"; Thomas J. Watson Sr., fundador e diretor da IBM desprezou o computador(?!) e a Kodak desprezou a fotocopiadora Xerox. As mentes iluminadas de cada geração têm, curiosamente, aversão à disrupção tecnológica e subavaliam o seu poder de modificação do comportamento humano. Agora resta a questão: os novos comportamentos são melhores? Não, não são. Mas são piores? Também não são. A comunidade humana é o que é, e qualquer juízo de valor é destituído de outra qualquer validade moral para além da que domina internamente cada grupo social. As mentiras, as falácias, a retórica política, todas continuam o caminho que começaram a trilhar desde que nasceram as primeiras religiões, as primeiras cidades, as primeiras estruturas políticas. Tudo adaptado a uma população crescente e insuportável, tanto na burrice como na criatividade. O prosopobibliófobo é apenas um misantropo que nega a si mesmo, ilusoriamente, a liberdade de participar diretamente no curso da História. E a História, meus amigos, está hoje no Facebook. Quer queiram, quer não.

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