sábado, 6 de outubro de 2018

O teste

"Tinha ouvido falar do teste do marshmallow. Dás a uma criança um marshmallow e dizes-lhe que se ela (a Layla, neste caso) conseguir resistir à tentação de o comer por 10 minutos, lhe darás um segundo.

Tentei, pois, fazer o teste com a minha neta de três anos de idade. Não com marshmallows, mas com chocolates, de que ela gosta muito mais.

De acordo com os resultados experimentais extensivos, as crianças que “passam” o “teste do marshmallow” são, de longe, mais bem sucedidas na sua vida futura.

Terão apreendido uma verdade fundamental da vida: que adiar uma gratificação pode levar a um benefício muito maior e a longo prazo.
Ela sentou-se e olhou para o chocolate. A ampulheta de dez minutos escoou-se finalmente. Ela tinha conseguido. Pediu o segundo chocolate a que tinha direito.

Dei-lho. Ela tinha agora dois chocolates nas suas mãos. Foi aí que ela olhou para mim e perguntou: “Queres um, avô?”

Nem seria preciso dizer que a partir daquele momento daria sempre, e prontamente, a minha vida por ela."

Richard Muller, Prof Physics, UC Berkeley, author "Now, The Physics of Time

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

José Saramago ou O Limbo

Foto de  Pedro Soares ©

O seguinte texto foi publicado por mim a 12 de março de 2010, no anterior "Da Condição Humana". Decidi ressuscitá-lo por razões que tornarei públicas em breve:

Seja por razões políticas, seja por razões religiosas,  seja pela falta de pontuação, seja pelo estilo, seja por razões de residência, seja por razões conjugais, seja pelo formato da cara, seja pelo tom da voz, seja pelo solipsismo, seja pela arrogância, seja pela Fundação sita na casa dos bicos-de-obra (para não fugir ao trocadilho fácil), há pouca gente em Portugal a gostar de José Saramago. Eu, por mim, não tenho (quase) nada contra o senhor. Gosta de cães. Preocupa-se com as pessoas. Preocupa-se com ele mesmo (que é uma pessoa, até prova em contrário). Escrevia bem (hoje, já nem por isso, mas, por vezes, ainda tem lampejos de génio) e foi, talvez, o escritor que mais me influenciou depois de John Steinbeck (pronto: e depois da Enid Blyton, honra lhe seja feita). Um dia escrevi-lhe um texto que, das duas, uma: ou nunca lhe chegou às mãos, já que antes de lhe chegar alguma coisa, há um crivo de pessoal da Fundação que decide o que é que José quer ou não quer ler, ou chegou-lhe, realmente às mãos e o senhor, solenemente, ignorou as minhas palavras. Era a respeito da Wikipédia e de uma referência que este autor fazia a certa altura, no seu Caderno, a este grande feito da contemporaneidade que, apesar de não ser, hoje, tão maltratado como nos tempos áureos em que eu muito lhe dei muito do meu tempo, ainda hoje é, na minha miserável opinião, maltratada de forma injusta e mal informada - ainda que seja, eventualmente, também defendida de forma inepta e mal formada. O texto foi este:
Chamo-te José e trato-te por tu porque convivo contigo desde o momento em que descobri "O Memorial do Convento" na biblioteca da escola e, perdido na filigrana de pedra e sangue das tuas palavras, descobri uma forma de tocar o sagrado, mesmo quando este nos aparece como uma nuvem fechada sobre si mesma. Sempre meu companheiro de oração ao Deus desconhecido que se entrevê através das réstias de bondade e vontade no ser humano, tive-te sempre por amigo, e como amigo chamo-te pelo nome, não que Deus te deu, mas que se não fosse Deus, não terias, porque se "Deus acrescenta" é o teu nome em hebraico, outro nome terias se ninguém acrescentasse Deus ao mundo. E, tendo, como é natural, as minhas diferenças de opinião a  respeito de pormenores na paisagem, creio que partilho contigo a mesma estrutura linguística íntima com que narras o mundo e eu o leio.

Tenho lido com regularidade o teu Caderno e, ao deparar-me com uma passagem sobre "O Corpo de Deus", leio, a certa altura uma passagem que me entristeceu, como é natural que nos entristeçamos quando um amigo troça de outro nosso amigo. Dizia "E nada de pôr-se com dúvidas sobre a divina presença na pastilha ázima como sucedeu a um sacerdote chamado Pedro de Praga, no século XIII, não seja que se repita o tremebundo milagre de ver a hóstia transformar-se em carne e sangue, não simbólicos, mas autênticos, e ter de levar outra vez a sanguinolenta prova em solene procissão para a catedral de Oviedo, como complacentemente no-lo explica Wikipedia, fonte a que neste difícil transe tive de recorrer." Não é sobre o milagre da hóstia que te queria falar, mas da complacência da Wikipédia a que, em difícil transe tiveste de recorrer. Leitor de Borges, pensei que te fosse fácil compreender a beleza literária própria deste poema-fonte que é a Wikipédia. Provavelmente, tens razão para estar descontente com uma enciclopédia em que o artigo que se centra na tua pessoa tem passagens de duvidosa intenção e não é, de todo, um artigo decente e ao nível do homem que és. Mas como homem que és, e com os defeitos que tens (que também os tens, creio eu que até aos teus próprios olhos), mais os defeitos que Deus te acrescenta pelos olhos de quem contigo não partilha a mesma linguagem íntima, é inevitável que a estrofe a ti dedicada, naquele poema por vezes monstruoso que se chama Wikipédia, seja, em determinados aspectos, de fraco calibre. A Wikipédia, como bem deves saber, pode ser escrita por qualquer pessoa. E isso é monstruoso aos olhos de qualquer pessoa que acredita no poder sagrado das palavras enquanto formadoras de vontades e guias de sensibilidades. Acontece que, tal como leio e continuo a ler Saramago com o respeito profundo que o mais sábio dos amigos nos merece, eu também aprendi a amar as palavras estropiadas da Wikipédia e sinto sempre que alguém está a perder algo de profundo quando passa pela Wikipédia com o desdém que um texto mal escrito inspira aos cultores da palavra. A Wikipédia não tem um autor, é certo. Tem muitos. Todos aqueles que aceitam o repto de carregar no botão "editar" e se decidem a modificar o texto, conformando-o à sua vontade. Neste processo, sucedem-se séries de camadas que, como num corte geológico ou no estudo aprofundado de um palimpsesto, revelam a força da vontade dos leitores sobre as palavras que se moldam como plasticina. Estou de acordo que deste processo jamais nascerá, definitivamente, um texto digno de se ler como se lê Saramago. Eventualmente, algum leitor de génio poderá deixar uma obra prima soterrada em novas edições de outros autores, porque ali não se procuram obras primas da literatura, mas, apenas, informação e imparcialidade. Fraco objectivo, meta aborrecida, dirá, provavelmente. E eu concordo. Meta aborrecida, mas o caminho... poderia ser espantoso se, cada vez mais, em vez de julgarmos ver "complacência"  num artigo bem ou mal escrito da Wikipédia, víssemos o convite à nossa própria participação daquele cadavre-exquis que vai muito além do sonho mais delirante de um surrealista. Aconselho-o a pegar num artigo da Wikipédia e que carregue na "história" do mesmo e explore as versões antigas desse artigo, se as tiver - isto é, se não for um artigo com presunção a uma perfeição que apenas gerará o desinteresse de alguém em reescrevê-lo. Aconselho-o a ler a discussão desse artigo (o que os escritores-editores disseram sobre o artigo, sobre a forma de o escrever, os defeitos que apontam à veracidade, verificabilidade e imparcialidade do que nele é exposto); aconselho-o a tentar melhorar um artigo, reescrevendo-o; aconselho-o a ficar irritado com os outros editores que talvez venham a censurar a sua contribuição e que tentarão (a si, José Saramago!) ensiná-lo a escrever lá segundo as normas definidas pela comunidade. Uma comunidade de pessoas que, não sendo poetas (ou talvez o sejam em outros lugares que não lá) trabalham como formigas para juntar palavras que ensinem. Uns com um propósito, outros com outro. Uns mais preocupados do que os outros com os erros, omissões e vandalismos a que as palavras por alguns carinhosamente lá depositadas, são submetidas. Aconselho-o a reavaliar as palavras que lá encontrar. Há, com certeza, imensa informação (pouca, ainda, na nossa versão lusófona, que muito boa é, sabendo eu o quão reduzido é o número dos seus autores) que por vezes nos dá jeito. Se é certo que há erros (propositados ou não) disseminados na Wikipédia, é quase certo que a nossa capacidade crítica (se a tivermos) saberá destrinçar o trigo do joio (a não ser, claro, que estejamos a escrever uma tese de doutoramento onde não se admitirão o descuido de pequenos erros, ou erros curiosamente engendrados por espíritos que, como o revisor de "História do Cerco de Lisboa", decidem apôr um não à História para que dela nasça uma discussão). Eu defendo a Wikipédia. Dei horas e horas da minha vida à escrita de artigos que, sem qualquer contribuição financeira, poderão ser usados por qualquer pessoa no mundo e que, creio eu, poderão ajudar a esclarecer mais pessoas e a melhorar a sua vida. É por isso que o teu comentário algo frio a um texto que não guarda em si qualquer complacência, mas a nuvem aberta de uma vontade aberta a outras vontades, me fez doer um pouco o íntimo. Como se alguém troçasse de um poema de Camões por não compreendê-lo.

Ora, hoje li uma crónica de Miguel Esteves Cardoso sobre o massacre (ministra Canavilhas dixit) de livros perpetuado por algumas editoras, onde é dito a certa altura:

José Saramago – mau escritor mas boa pessoa, na minha miserável opinião – foi enganado.

Ri-me a ler esta passagem. O MEC sempre teve jeito para descobrir aquilo em que ninguém tinha pensado. José Saramago mau escritor, mas boa pessoa. Creio que qualquer pessoa decente prefere ser boa pessoa a ser bom escritor. Eu valorizo, de longe, mais a bondade que o talento. Ora, Saramago tem a bondade de um ser humano vulgar e mediano. Não é santo nem herói nem a isso se candidatou alguma vez. Irrita-se como qualquer pessoa, é arrogante como qualquer pessoa, ignora os outros como qualquer pessoa. Há uma passagem qualquer de um dos seus cadernos em que este se censura a si mesmo por não se ter dirigido a qualquer um dos afro-americanos que viu à frente quando estava perdido em Nova Iorque, há uma passagem em que decide pintar o chão da sua casa com chá, há passagens de pura humanidade naquilo que escreve. Humanidade cheia de uma espiritualidade chamada bondade. E para se ser bom não é preciso muito. Basta ser uma pessoa vulgar, com momentos maus.

Saramago é uma pessoa vulgarmente boa e vulgarmente má. Ninguém retirará da minha vida as horas em que meditei sobre a sua obra - horas que me fizeram tal como sou (e, provavelmente, que fizeram grande parte daquilo que vale a pena naquilo que sou). Mas, hoje, não já o admiro como admirava. Até porque também sou uma pessoa vulgar. Vulgarmente boa e vulgarmente má (e escritor de duvidável qualidade, digam o que disserem os meus amigos que meus amigos são apenas e através daquilo que escrevi). E como pessoa vulgar que sou, sinto mágoa quando sou ignorado. E detesto pessoas que se isolam em pedestais. Hoje posso dizer que continuarei a ler Saramago... mas não já como antes. Saiu do meu Paraíso e não lhe dou entrada no meu Inferno.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Uma pastelaria em Tóquio, de Naomi Kawase



Com intenções declaradamente didáticas, "Uma pastelaria em Tóquio" é um daqueles objetos cinematográficos singelos que, despidos de qualquer pretensão inovadora, nos ajuda a mergulhar na paz triste mas consoladora das histórias que cruzam solidões. Um homem com um passado e uma culpa; uma jovem de futuro incerto e uma personagem que enche todo o filme: uma senhora de idade avançada, com marcas de doença nas mãos, olhar e gestos infantis, simultaneamente comedidos e ingenuamente expansivos, maravilhosamente interpretada pela atriz japonesa Kirin Kiki. Três solidões que se cruzam sob a sombra luminosa das cerejeiras.

É também um filme sobre comida. Sobre slow food. A comida que conversa com o cozinheiro enquanto sofre as sucessivas mortes alquímicas em direção ao conforto aconchegante e revelador do ato sagrado de comer. 

Didático, portanto, nas suas intenções de humanizar aqueles que, deformados exteriormente por uma doença cruel e empurrados para o exílio das gafarias, podem ter tanto para ensinar e tanta beleza para dar ao mundo quanto o mais iluminado dos mestres. E didático pela simplicidade direta e linear com que ensina o respeito, de traços tão marcadamente nipónicos, com que se deve tratar aquilo que fazemos e aquilo que comemos. O respeito que devemos à vida.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Reabilitação e Fraternidade, de Elaine McMillion Sheldon


Elaine McMillion Sheldon é uma cineasta norte-americana nomeada este ano para um óscar pela curta-metragem documental "Heroin(e)". Em "Recovery Boys" ("Reabilitação e Fraternidade"), mais recente e disponível na Netflix, volta a pegar no tema da toxicodependência e no esforço, por vezes inglório, de quem tenta ajudar os outros a saírem do universo paralelo de um paraíso artificial de força avassaladora e onde não cabe a presença dos laços afetivos a que chamamos de amor. É uma visão desencantada e as personagens que enchem o filme não são objetos cinematográficos particularmente interessantes. Não o têm de ser. São pessoas, limitadas na sua própria luta e em confronto com as suas culpas e a sua impotência, não têm tempo para serem personagens interessantes para os outros. Nem a sua dignidade de seres humanos, donos da sua esfera privada, permite mais do que conhecer pela rama a complexidade das pulsões que os arrasta, pendularmente, entre a sobriedade e o desejo do prazer injetável.

Acompanhando a sua luta durante alguns meses, num programa de reabilitação que alia o programa de 12 passos com a vida e a rotina de trabalho rural, numa pequena cidade da West Virginia, o filme podia bem ser resumido a uma curta-metragem. Logo no início há uma frase interessante: "pensava que era assim que se vivia. Não sabia que havia gente a viver sóbria". Mais à frente, a evolução do conceito de amor, afetividade e laços familiares é bruscamente destruído por outra frase brutal e insensivelmente colocada: "tenho o amor e mais nada". E percebemos o abismo de indiferença que separa a não-ficção da nossa necessidade egoísta de ver um bom filme. Que não o é. Nem poderia ou deveria ser.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

A morte heroica de Federico Garcia Lorca


A suposta fotografia histórica do fuzilamento de Federico Garcia Lorca.



Ultimamente, tenho verificado um acréscimo, no que diz respeito à divulgação de informação falsa, entre as pessoas que defendem as coisas acertadas. Defender a escola pública é acertado. Defender a liberdade de expressão e de associação cívica e política é acertado. Defender uma cultura livre de crueldade gratuita, incluindo sobre animais, é acertado.

Penso que é um sinal de cansaço. Quero acreditar que é apenas um sinal de cansaço.

Os exploradores, os egoístas, os moralistas religiosos, os fariseus e os saduceus da nossa sociedade, vulgarmente disfarçados de conservadores e, por vezes, de libertários (justamente designados de liberotários por quem não os grama, como eu), são peritos nesse género de corrupção do imaginário coletivo. Porém, a esquerda parece estar a ser ocupada por esta doença da mentira útil.

Não contem comigo para tal peditório. Uma mentira é o contrário da verdade. Eu dou cara pela verdade. Se houver verdades inconvenientes, terei tempo para nelas me angustiar e nelas me calar. Não me calhou tal martírio.

Hoje deparei-me com uma foto extraordinária no Facebook. Dizia que era uma foto histórica do fuzilamento de Federico Garcia Lorca.

Agosto de 1936. O suposto Federico Garcia Lorca, muito mais parecido com o Gabriel Garcia Marquez, aparece com o punho direito fechado a “declamar” o seu último poema. Causa-me uma tremenda confusão esta necessidade de tornar os últimos momentos de algumas personagens em atos de bravura estética, como se estes últimos momentos definissem a pessoa. Federico Garcia Lorca pode ter chorado baba e ranho. Muito dificilmente terá morrido naquela pose. Não é isso que interessa. O seu assassinato foi um ato covarde. Pouco interessa, aliás, as razões que levaram ao mesmo, exceto as que se prendem à ignorância e ao totalitarismo. Se Lorca foi corajoso nas suas escolhas e no seu caminho de liberdade, pouco interessa como morreu. Pode ter morrido de cabeça erguida. Acredito que sim. Mas também pode ter morrido a suplicar. Quem o sabe? Não há registos de tal triste momento.

A sua morte pode ser dramatizada. A sua morte pode ser dada como exemplo. Pode ser romanceada. Quando morremos, deixamos de ser pessoas. Passamos a ser aquilo que deixamos. Lorca deixou muito. Deixou tanto, que não precisa de fotografias falsas da sua morte. Digam que aquela fotografia é inspirada em Lorca. Porque é. Inspirada nele e em outros que morreram pela liberdade e pela verdade. Mas não passem a ideia, sequer, de que aquela imagem é fiel a um acontecimento histórico trágico e que merece o nosso respeito. Isso começa por fazer-se respeitando a verdade.

A foto em questão é apenas uma imagem retirada de um videoclipe de uma banda espanhola chamada Boikot, numa canção que dá pelo nome de 'Lágrimas de Rabia” e que é, de facto uma homenagem, a quem, como Lorca, morreu às mãos do obscurantismo. Podem verificar isso aos 2 minutos e 14 segundos.


Um lugar silencioso, de John Krasinki


"A quiet place", "Um lugar silencioso", de 2018, realizado e protagonizado por John Krasinski e pela sua também companheira na vida real, Emily Blunt, exige do espectador a absoluta suspensão de qualquer sentido de verosimilhança. Basta percorrer com os olhos algumas das críticas dos utilizadores do IMDB para, depois de visto o filme, confirmarmos as falhas óbvias do argumento no que diz respeito à sua compatibilidade da história com as mais básicas noções de bom senso de uma família sobrevivente num mundo devastado por criaturas cuja origem não é, jamais revelada. E pouco interessa. Podemos, constantemente, perguntar porque é que as personagens agem de forma tão inconsciente e leviana nesta ou naquela situação, mas o filme não pretende ter esse género de consistência. O objetivo é a absoluta alienação do espectador. O objetivo não é adentrar nas profundezas da alma humana, mas apenas, sentir o medo, de forma onírica. Sentir o silêncio e a ameaça constante de um pesadelo. Nem todos os objetos artísticos têm de, forçosamente, revelar algo, e estou bem convicto de que os sonhos não revelam nada sobre ninguém, a não ser de forma muito distorcida. Porém, quantas páginas de elevada literatura e obscura ciência se lavraram a partir deles? Quantas correntes artísticas, antes ou depois do Surrealismo, irromperam da pedra e do pergaminho?

Não é, porém, um filme surrealista. É um pesadelo bem filmado. Bem contado. E que, acabado, nos devolve inteiros. Não é pouco.

A poesia inunda os passeios, de Santiago Montobbio

Santiago Montobbio
A poesia inunda os corredores, as salas de aula,
as ruas, as alcovas. A poesia
é tão livre como um pássaro
e não se resiste a deixar de ser mistério.
A poesia povoa-nos, inunda-nos, penetra-nos.
Pertencemos à poesia. A terra é poesia.
Mas também o é a noite, o medo,
as fauces do tempo e o esquecimento.
Também a poesia é seu signo.
Se abandono a poesia, do humano abdico.
Mesmo que seja no silêncio que nela vivo.

Santiago Montobbio
La poesía es un fondo de agua marina


Santiago Montobbio é catalão, nascido em Barcelona em 1966. Formado em Direito e Filologia Hispânica pela Universidade de Barcelona. Professor de Teoria da Literatura e Crítica Literária da Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED).  Estreou-se como escritor na "Revista de Ocidente" em maio de 1988. 

Autor de livros de poesia reconhecidos como "Hospital de Inocentes" (1989), "Ética confirmada" (1990), "Tierras" (1996), "Los versos del fantasma" (2003) e "El anarquista de las bengalas" (2005). Ocupa a vice-presidência espanhola da Association pour le Rayonnement des Langues Européennes (ARLE), de Neuilly-sur-Seine, sendo correspondente em Barcelona da sua revista Europe Plurilingue. Foi finalista do prémio Quijote 2006 da Asociación Colegial de Escritores de España, atribuído ao melhor livro publicado no ano.

Sobre o seu primeiro livro, "Hospital de Inocentes", Juan Carlos Onetti escreveu que, de modo misterioso, sentia que este coincidia com o seu estado de ser quando escrevia. Camilo José Cela considerou os seus poemas “belos e profundos”; Ernesto Sabato disse que eram magníficos; Miguel Delibes "invejou" a força do seu verso e Carmen Martín Gaite comoveu-se estranhamente com estes poemas saídos de um poço de escuridão e verdade.

Coautor de um livro de arte, "Els colors del blanc" (2008) com o pintor Lluis Ribas. As suas conversas com a sua tradutora e espcialista na sua obra, Amaranta Sbardella també, foram publicadas sob o nome "Escribo sobre el aire del olvido" (2012). No Brasil foi publicada em 2010, pela Ateliê Editorial, uma antologia ("Onde treme o nome - Donde tirita el nombre") traduzida por Fernando Fabio Fiorese Furtado. 

Depois de vinte anos de escassa produção, em 2009 voltou a escrever com um vigor redobrado, dando a conhecer uma vigorosa tetralogia constituída por "La poesía es un fondo de agua marina(2011), "Los soles por las noches esparcidos" (2013), "Hasta el final camina el canto(2015) e "Sobre el cielo imposible(2016). Em 2012 ganhou o prémio Prix Chasseur de Poésie, da editora francesa Le Chasseur ábstrait éditeur.

Créditos fotográficos: La nave de los locos

domingo, 1 de julho de 2018

Quando os justos abandonam o caminho da verdade

A parábola dos cegos, de Pieter Brueghel, o Velho

Ainda ontem voltei a escrever neste blogue apenas porque estavam a espalhar mentiras. Independentemente de o fim ser louvável (a valorização da Educação Pública), quando os meios justificam os fins, há que utilizar a balança da consciência. A Educação Pública serve para educar os jovens (e os adultos também, embora de uma forma mais pontual ou indireta) no sentido de serem melhores cidadãos e valorizarem a verdade e o conhecimento. Ver professores a partilharem mentiras, seja por opção propagandística (isto é, mesmo desconfiando que é mentira) seja por inocência (que não é desculpável: a educação serve para abrir os olhos e não para adormecer a sociedade nos narcóticos da ingenuidade) é perder por completo a confiança naqueles que nos deviam guiar. Está a decorrer uma luta pela justiça. Os professores pedem justiça e pedem reconhecimento. Ora, eu sou professor. Mas não me ponho ao lado de quem utiliza mentiras para chegar a um fim, por mais justo que seja (a não ser em casos excepcionais, nomeadamente quando há vidas em jogo, como numa guerra).

O STOP, uma organização de professores onde todos estão integrados voluntariamente, nem que seja à força, decidiu partilhar este este texto:

"Desculpem o longo desabafo mas estava atravessado ...A vida ensina-nos a mudar de ideias ... e felizmente com o avançar da idade fazemo-lo cada vez mais tranquilamente, sem medos e complexos . Não sou Professor, mas sempre tive ligado às Escolas por questões profissionais e para além disso sou Pai de 4 filhos, um deles licenciado como Professor pela ESE LX (não exerce ... após o estagio ficou de tal forma descontente que por enquanto seguiu outro caminho) e outros três nos 11º, 9º e 6º ano. Critiquei muito esta greve, não pela legitimidade e pela causa dos Professores, porque isso é mais que óbvio e todos estamos com eles, mas pelo sentido de oportunidade dessa greve que prejudica essencialmente alunos e familias. Critiquei um pouco a quente e emocionalmente, influenciado também porque um dos meus filhos estar bastante dependente das notas internas e por sugestão da Direccção teve que realizar exames a disciplinas que ele sabe que irá passar. Mas volvidas 3 semanas (ainda não sei as notas internas) fui reflectindo, fui conversando com muitos Professores entre eles amigos que me são sempre queridos e dos quais valorizo muito a sua opinião , fui tomando conhecimento mais claramente quer das razões como de todo este processo de greve (não gosto e confio em sindicatos mas o STOP parece fugir desse modelo ... esperando que como habitualmente quando ganham força e influência, não se acomodem ao poder e não se tornem mais uns "paus mandados" desse mesmo poder) e confesso que está a ser para todos nós ... um enorme exemplo de cidadania, de intervenção civica, de determinação e de luta pelos nossos legitimos direitos ... mas também um braço de ferro de gente que trabalha , que se dedica em condições muito dificeis ... contra uma classe politica cada vez menos transparente e cada vez mais incompetente ... insensivel aos problemas e aspirações de todos nós. Mais do que uma luta dos Professores esta está a tornar-se uma luta de todos nós por solidariedade e devia servir de exemplo para outras causas e para tirar do marasmo um povo muito feliz e determinado mas que cada vez mais , fruto do descontentamento e da incapacidade de mudar as coisas, se tornou completamente passivo aos atropelos das desgovernações que vamos tendo. E relembro entre outras, por exemplo, a classe policial que é das mais prejudicadas e esquecidas ... que sirva de exemplo para que determinadamente sem cedências por falsas promessas lutem pelos seus direitos. Pois bem para finalizar, considero esta greve uma enorme lição de cidadania e intervenção civica para os meus filhos ... esperando sempre que lutem pelos seus objectivos e direitos com tal determinação e união. Como Pai e Cidadão apoio totalmente as motivações dos Professores e espero sinceramente que esta luta acabe com uma grande vitória da democracia, porque mais do que a habitual luta de sindicatos que também jogam nestas águas turvas do poder e braço de ferro com o Governo, esta é uma luta de pessoas que lutam pelo que lhes pertence e isso é mais que justificativo e legitimo. Finalizo ... e mais uma vez desculpas pela extensão, mas sinto também que é uma forma de agradecer aqueles que todos os dias lutam também pelo melhor para os meus filhos. Obrigado!"

Este texto é forjado.
Tenho provas? Não.
Mas quem é este pai que tem medo de assinar por baixo de um texto em que se manifesta solidário com os professores?

E se for verdade? Se for verdade, é pior. Porque professores estão a partilhar um texto apócrifo sem qualquer garantia de verificação da sua autenticidade. Professores estão a contribuir para este clima onde tudo o que aparece escrito passa a ser verdade se for a nosso favor e a ser falso se for contra nós. Pela dignidade. Pelos professores. Não partilhem aquela opinião, a não ser que o "pai", isento (e que não seja ao mesmo tempo professor) apareça a dar a cara. Apoios anónimos valem tanto quanto uma injúria.

sábado, 30 de junho de 2018

Oscar Tabárez e a Educação Pública




Partilhar informação errada está sempre errado, mesmo que a mentira possa, à primeira vista, favorecer-nos.

A informação acima apresentada numa imagem que está a ser amplamente e acriticamente divulgada no Facebook, não corresponde à verdade. Seria bom demais que alguém aproveitasse as luzes do estrelato futebolístico para passar uma mensagem importante. Infelizmente não foi o que aconteceu.

Diz a imagem que Oscar Washington Tabárez, selecionador do Uruguai pediu ao governo para que aprovasse uma lei que garantisse 6% do PIB do país para a Educação Pública. Teria dito, inclusive, que “de nada adianta ganhar o Mundial se nossas crianças não sabem sequer onde fica a Russia”. Mantenho o texto como aparece, com a evidente tradução em português do Brasil e sem acentuação em Rússia.

Não é dito nessa imagem, mas a citação é de uma carta que teria sido escrita pelo técnico do Uruguai, mas que é, obviamente, apócrifa, ou seja, não foi ele quem a escreveu.

Quem o deixou bem claro foi a filha de Tabárez, Tânia Tabárez, jornalista da TVCiudad, num tweet onde diz: “Se é para inventar uma carta do meu pai, ao menos façam-na sem erros ortográficos, não? Asquerosa, esta nova modalidade de faltar ao respeito às idéias e silêncios das pessoas” e termina com uma hashtag a apelar para as pessoas não compartilharem informação sem a checar primeiro.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Miranda do Douro, casa das quatro esquinas.

Deixei de escrever poesia, ou de chamar poesia àquilo que escrevo, há algum tempo, por desencanto. Hoje em dia, a maior parte dos cultivadores da poesia são idiotas que não sabem conjugar duas ideias seguidas e se socorrem da liberdade do verso, branco ou não, e dos sentidos ocultos, para vestirem a sua burrice com palavras soltas, enquanto esperam ser reverenciados por palavras que não são suas. Há alguma utilidade sociológica na leitura da má poesia. Muitas vezes, mais que na boa. A boa poesia traz o desconforto exaltante da profecia. A má, traz a imagem fiel do que é ser humano numa determinada época, mas sem os filtros da erudição, do génio ou, simplesmente, do bom gosto. Não posso dizer que estas qualidades me sirvam de vestimenta. Ou que alguma vez me tenham servido. Mas vou voltar a escrever. Não por ser útil. Não ser bom a fazê-lo. Não por ser mais clarividente que os outros. Mas porque é preciso. Não sei porque é que é preciso. Mas é.