quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

O meu último poema

Deixei de escrever poesia.

A árvore que dá cachaça

Considera-me água corrente.

E ninguém sente a falta dela.

Paz à sua alma.

sábado, 22 de agosto de 2015

Marce, de Gláucia Lemos


Em Marce,  a escritora baiana Gláucia Lemos, atraída pelos sons e pelo ritmo selvagem e encantatório da natureza diabólica do ser humano, tem a coragem de se adentrar pelo corredor escuro do egoísmo humano. Mas, tal como a personagem que dá nome ao romance, prefere deixar algumas portas fechadas. Em termos formais, o enredo não dispensa algumas revelações com sabor a literatura de cordel do século XIX ou às comédias de Beaumarchais e, tal como nestas, a rede humana de coincidências e laços de sangue insuspeitos são reveladores de uma ordem social de aparências que se vai esboroando perante novos caminhos de liberdade.

É um romance onde a um sentimento prevalecente de libertação feminista se contrapõem momentos de medo, omissão e cobardia. Uma cobardia supersticiosa já entrevista num espelho que serve de subtítulo ao livro. A cobardia de quem vê alguém morrer devido ao nervosismo negligente da autoridade e aceita placidamente a injustiça com um mero amuo de despeito, a cobardia de quem suspeita de um crime pavoroso e prefere fingir que tudo está bem. Uma cobardia que varre para debaixo do tapete tudo o que é inconfortável e remete Marce, esta personagem central de um bildungsroman no feminino, para um desconcertante estatuto de ambiguidade. Exilada no limbo de uma praia remota, tanto paraíso quanto inferno. Ou, como se diz a certa altura, num paraíso a que se acede por meio dos caminhos do inferno - quando, bem diz a doutrina, quem entra no inferno não pode acalentar a esperança de lá sair. E Marce não sai do inferno começado nos seus amores falhados. A verdade deste romance - que cada romance só vale pelas verdades que encerra nas suas estudadas mentiras poéticas - está exatamente no caráter ambíguo de uma personagem que não é um modelo de virtudes. Primeiro ingénua, à conta da paixão dedicada a um torpe espécime de macho, Marce evolui ao longo da narrativa, torna-se mulher liberada - expressão utilizada desdenhosamente por outra personagem não menos liberada no que diz respeito a costumes e à expressão tendencialmente  plena da sua sexualidade. Tendencialmente porque a alegoria é clara: só através da perda se podem atingir patamares mais elevados de maturidade. Quando, na narrativa começada in media res, Marce se volta a olhar no espelho chinês dos maus presságios, devidamente ornamentado com um ouroborus, símbolo da autofecundação e da solidão enquanto elemento definidor do eu, o que Marce encontra é aquilo que falta, aquilo que se perdeu. Aquilo que, perdendo-se, a completa enquanto mulher. Marce, personagem central de um bildungsroman, como já disse, não evolui ou se educa através do confronto com teorias e sábios gurus, mas através da perda. À medida que o seu mundo vai estreitando, paradoxalmente, maior é a linha de costa que os seus pés descalços percorrem em direção ao desvelar dos medos e das superstições, abrindo-se-lhe as portas dos simples que a acolhem num meio onde a consciência do mundo ainda se encontra em estado de fábula, numa névoa onírica que parece sair de outro livro de Gláucia, Luaral.

Mas se Marce é, ao nível estrutural, o centro nevrálgico desta história, a família de onde foi desterrada é a personagem moral. Uma família que é, acima de tudo, uma instituição social que, ainda dando os primeiros passos no que diz respeito à aceitação das liberdades individuais, está ainda minada pelo pensamento puramente egoísta e enformado na luta pelo poder. O amor é apenas um capricho ao qual se cede, dada a força inexorável da pele contra pele e a sua transmissão de um subtil veneno onde não há lugar para paixões amenas ("A química da pele é uma porta escancarada para esse vírus miserável que une as criaturas."). Cada ato de amor, para cada elemento daquela família que se desmorona é, também, um ato de conversão. Uma mudança de fé.

Em resumo, um livro que, de acordo com a receita de Stendhal, é um espelho ao longo de um sinuoso caminho. Um espelho que tanto reflecte como se nega a tudo abarcar. Porque somos assim. Incompletos e limitados pelas molduras e pelos agouros e presságios, bons ou maus, com que enquadramos o nosso olhar.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Luís Vargas I

Um tal de Luís Vargas, obviamente do PS, ou que, sendo de esquerda é burro o suficiente para só bater em metade da coligação que governa o país, tem, porém, a inteligência de dizer coisas que são óbvias. Talvez não seja inteligência. Talvez seja apenas esperteza e vontade meritocrática de substituir o coiso dos corações... O.… Edson Ataíde. Pois.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Acróstico

Finalmente olhaste para mim,
Olhos nos olhos,
De sorriso rasgado.
E
Ignorando
Vénias,
Ouviste-me,
Simplesmente.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

INE

Os números sobre as pessoas:

Idade, residência, camas e violência,

Vão sendo lançados.

E os cidadãos, apesar da logística,

Com bons resultados em estatística,

Entalados em desemprego, inflação, dívida,

E uma alta taxa de alfabetização

E baixa literacia,

Encavalitando-se nos números,

Fazem democracia.

Lançam fundamentadas opiniões.

Os números não mentem.

- Ai que não mentem!

- Não mentem, não!

As palavras sim. Especialmente

As que vêm encavalitadas em números,

Embrulhadas em papel de opinião.

Depois, há a Razão.

E essa só interessa a quem dos números

Da mortalidade, subnutrição, obesidade

E falta de educação,

Não faz outro escrutínio

Ao consumo de alumínio, cimento e alcatrão,

Que não o que não se deduz

De um incalculável cagalhão.

domingo, 3 de maio de 2015

É por isso que tenho medo

Corre pela Internet, a seguinte citação, ora atribuída à pena de Shakespeare, ora aos charros do Bob Marley. Ora, nem a um nem a outro pertencem estas linhas muito prosaicas e de pouca elegância poética, embora com um fundo aforístico que faz pensar em poesia asiática. O texto, em português do Brasil, tem esta versão:


Você diz que ama a chuva,
Mas você abre seu guarda-chuva quando chove.
Você diz que ama o sol,
Mas você procura um ponto de sombra quando o sol brilha.
Você diz que ama o vento,
Mas você fecha as janelas quando o vento sopra.
É por isso que eu tenho medo.
Você também diz que me ama.


Em português de Portugal reza:

Tu dizes que amas a chuva,
Mas abres o guarda-chuva quando chove.
Tu dizes que amas o Sol,
Mas procuras uma sombra quando ele brilha.
Tu dizes que amas o vento,
Mas fechas as janelas quando ele sopra.
É por isso que estou preocupado,
Tu disseste que me AMAS.


O texto em Inglês:

“You say you love rain, 
But you use an umbrella to walk under it. 
You say you love sun, 
But you seek shelter when it is shining. 
You say you love wind, 
But when it comes you close your windows. 
So that's why I'm scared 
When you say you love me.”


Em francês, também corre uma outra versão:

"Tu dis que tu aimes la pluie,
Mais tu ouvres ton parapluie quand il pleut. 
Tu dis que tu aimes le soleil,
Mais tu cherches l'ombre quand il brille. 
Tu dis que tu aimes le vent,
Mais tu fermes ta fenêtre quand il souffle. 
C'est pourquoi j'ai peur
Lorsque tu dis que tu m'aimes."

E em castelhano:

Dices que amas la lluvia,
Pero abres tu paraguas cuando llueve
Dices que amas el sol,
Pero buscas una esquina con sombra cuando el sol brilla
Dices que amas el viento,
Pero cierras tu ventana cuando la brisa sopla.
Por eso temo
Cuando me dices que también me amas"


Para ajudar à confusão, há três (ou quatro, ou, quem, sabe, mais...) textos semelhantes, atribuídos a Jean Cocteau, a Sacha Guitry e a Jacques Prévert:

Tu dis que tu aimes le poisson,
Et tu leurs coupes la tête. 
Tu dis que tu aimes les fleurs,
Et tu leurs coupes la queue. 
Tu dis que tu m'aimes...
Ça m'inquiéte!


Dizes que amas os peixes,
Mas cortas-lhes a cabeça.
Dizes que amas as flores,
Mas corta-las pelo caule.
Dizes que me amas...
Isso inquieta-me.
(atribuído a Guitry)

Tu dis que tu aimes les fleurs,
Tu les coupes.
Tu dis que tu aimes les poissons,
Tu les manges.
Tu dis que tu aimes les oiseaux,
Tu les mets en cage.
Quand tu me dis "Je t'aime",
J'ai peur...

Dizes que amas as flores,
Mas corta-las.
Dizes que amas os peixes,
Mas come-los.
Dizes que amas os pássaros,
E fecha-los em gaiolas.
Quando dizes "Eu amo-te",
Tenho medo...
 (atribuído a Prévert)

Outro ainda, atribuído a Prévert:

Tu dis que tu aimes les fleurs
Et tu leur coupes la queue
Tu dis que tu aimes le vent
Et tu fermes la fênetre
Tu dis que tu aimes les escargots
Et tu les plonges dans l’eau bouillante
Quand tu dis que tu m’aimes
Ma chérie, j’ai peur.


Dizes que amas as flores
E cortas-lhes o caule
Dizes que amas o vento
E fechas a janela
Dizes que amas os caracóis
E mergulha-los em água a ferver
Quando, dizes, que me amas,
Minha querida, tenho medo.

Finalmente:

Tu dis que tu aimes les fleurs
Et tu leur coupes la queue,
Tu dis que tu aimes les chiens
Et tu leurmets une laisse,
Tu dis que tu aimes les oiseaux
Et tu les mets en cage,
Tu dis que tu m'aimes
Alors moi j'ai peur.


Dizes que amas as flores
E cortas-lhes o caule,
Dizes que amas  os cães
E prende-los a uma trela.
Dizes que amas os pássaros
E fecha-los em gaiolas,
Dizes que me amas,
Por isso tenho medo.
(atribuído a Cocteau)

A ideia de que é uma citação de Bob Marley tem origem numa canção cantada sabe-se lá por quem, mas que se decidiu atribuir a Bob Marley. Note-se, de facto, que o conceito subjacente ao texto não condiz em nada com a filosofia de Marley, incapaz de ver medo ou sinais de traição em manifestações amorosas. Há, contudo quem refira que, algures num filme não identificado e na "intro" também não identificada de uma não identificada canção, Marley diz estas tão desconcertantes palavras, sendo ele quem era.

Ora, há sempre alguém que se dê ao trabalho de fazer arqueologia internética Nos comentários deste post, entre algumas melgas que repetem que é Bob Marley, desenrola-se um diálogo interessante que parece reportar a origem do texto à Turquia. O texto parece seguir as linhas mestras da poesia folclórica turca e, pelo que aprece, é da autoria de um elusivo poeta turco que daria pelo nome de Qyazzirah Syeikh Ariffin. Sem certezas, contudo. Pouco há sobre este autor. Nem uma linha biográfica. Nada. Talvez a ele volte mais tarde.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Da ininsistência


Para o cristianíssimo apóstolo, bem amado das mais pagãs e sedutoras divindades,
Paulo Brabo



O tempo, que não existe, tudo destrói.
Tudo corrói
Tudo.
O tempo tudo anula,
Tudo engole,
Tudo apaga,
Tudo arrasa
Tudo.
Caem os Impérios, revelam-se os mistérios,
Povoam-se ermitérios e nascem vivas,
ressurretas,
as almas mudas, esquecidas, dos cemitérios.
O nada explode,
O tudo encolhe,
O algo foge.
O burro aprende.
O inevitável suspende o seu olhar
E retrocede.
O maior inimigo, rendido, cede.
O Tempo tudo constrói
sobre os membros mortos das suas vítimas.

O Tempo, que não existe, insiste em ser,
e, não existindo, nele tudo insiste em converter.

sábado, 18 de abril de 2015

Legendas I

Anémonas

Fritilárias

Aquilégias

Moedas-do-papa

Rosas-macartney

Lírios-da-filadélfia

Dedaleira

Papoilas-de-shirley


Daqui:



terça-feira, 7 de abril de 2015

vii

Paulo Brabo, pegando num texto de Elliott Colla, professor de literatura árabe na Universidade de Georgetown, em que este relativiza a barbárie iconoclasta islâmica, expõe, no seu pensamento claro e luminoso que aquilo que é património histórico mundial, ou assim é classificado pelas "elites ocidentais" é "santo" ou "sagrado" porque é único e insubstituível e não porque as elites impõem a sua veneração. Os sítios arqueológicos destruídos por aquela laia rasca e abominável de gente são sagrados de forma absoluta da mesma forma que as vidas humanas ceifadas pela demoníaca iniquidade destas bestas porque tanto estes como estas, ao retornarem ao pó, não têm meios de ressuscitar a não ser por uma muito improvável intervenção divina. E de intervenções divinas estamos falados. Deus ainda dorme no nada, e se encarnou ou empeixou, já foi comido pelos abutres da inexistência. Ou da indiferença, que é pior. Por outro lado, D. Jorge Ortiga, eminência parva (não parda, que colorido é ele), apela, segundo o Diário do Minho de 5 de Abril passado, contra o "silêncio ensurdecedor" dos crentes que permitem o ataque à venerável instituição que é a "família cristã" e que segundo este pensador de meia tigela, deveria ser alcandorada à condição de património imaterial da humanidade. O fado é, o cante alentejano é, o samba também, logo, a família cristã também. A família é a unidade central de quase todas se não todas as sociedades, sejam elas ocidentais ou não. O que este senhor, na sua retórica fascista pretende, resume-se à eliminação da variedade. A destruição de património histórico é profanação porque empobrece a variedade das manifestações humanas a que temos acesso para estudo e usufruto, tal como a profanação de ambientes selvagens e o ataque à biodiversidade. Insistir que a variedade de comportamentos humanos que se fundam no amor entre pessoas é detestável apenas porque não cumprem as regras de uma instituição muito conhecida pela sua história de maldade e pelo seu presente inquinado por práticas corruptas e perversas, é comparável ao absurdo da teocracia islâmica. É um puro desrespeito pela caraterística que tornou o ser humano - que digo eu: que tornou a vida - aquilo que é.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

vi

A caraterística distintiva do fascismo é a importância dada aos interesses corporativos em detrimento dos interesses individuais, necessariamente conflituantes. O fascista defende a união e o consenso. A sociedade é vista como um feixe (fasci, em Italiano) de forças sociais amarradas por valores que não podem ser questionados, como a tradição, a Pátria, a religião e o líder. O indivíduo é apenas valorizado quando o seu carisma lhe concede autoridade devido ao seu poder económico (os magnatas que se agarram como saprófitas ao regime instaurado) ou simbólico (nomeadamente membros do alto clero). O indivíduo é valorizado enquanto possível líder; enquanto varão ilustre. Nunca enquanto pessoa. A retórica fascista pode por vezes dar a ideia de que se preocupa com alguns indivíduos. Com as crianças (mas apenas porque são os reforços que permitirão a manutenção do regime); com os velhos (apenas enquanto símbolo da tradição, das raízes, da raça) e com as mulheres, vistas como seres frágeis cuja utilidade reside meramente na maternidade, embora creia que regimes fascistas modernos pudessem perfeitamente adaptar-se a uma outra imagem da mulher. As dilmas-guerrilheiras, num lado do espectro, e as mérkeis-arautas-das-virtudes-do-capitalismo demonstraram à saciedade que a mulher também pode fazer parte da estrutura de força e autoridade do estado, seja a que nível for no organigrama militar e policial. A mulher serve tão bem como o homem para carne de canhão. Os métodos contracetivos acabaram com a fatalidade da maternidade - em vez de dar vida, as mulheres passaram a ter ao seu alcance um destino homicida, caso sintam que esse é o caminho que dá significado à sua passagem por aqui. Enfim, hoje, ainda mais que no tempo de Benito Mussolini, um regime fascista seria (e é, porque há elementos de fascismo na opinião pública atual cada vez mais fortes e inquestionados, a não ser pelas aves raras do esquerdismo mais intelectual a que ninguém dá crédito) o regime da morte do indivíduo. Da morte da personalidade e da diferença. O regime do nojo e da proibição. O fascista odeia aquilo que o enoja, não aquilo que considera injusto. Odeia o pedófilo porque o abuso de crianças é nojento - não porque é uma violência sobre um ser humano. Odeia o estrangeiro porque tem uma pele nojenta, um cheiro nojento, um sotaque nojento. Odeia aquilo que o enoja, não aquilo que considera injusto.  Nada é injusto se serve a Glória da Nação.

A direita em Portugal não é necessariamente fascista, embora viva embebida de conceitos e valores fascistas. Por isso, pode reclamar para si alguma defesa do indivíduo, em contraste com a defesa do coletivo pela esquerda. Entenda-se, contudo, que, tal como já disse, o indivíduo apenas interessa a esta ou a qualquer outra direita, dita fascista ou não, enquanto líder das forças unidas e consensuais da sociedade, enquanto empreendedor capitalista.

domingo, 5 de abril de 2015

Dos anjinhos aos pés da Virgem do Sameiro

Que o Santuário do Sameiro é um monumento ao fascismo quase toda a gente sabe. Hoje, chamou-me a atenção os pés gastos da apocalíptica Senhora. Os devotos peregrinos passam as mãos, rente à cabeça da serpente calcada e persignam-se perante tamanha autoridade. Contudo, olhando mais abaixo, apercebemo-nos que não é apenas a serpente a sofrer com o peso da imaculada. Os anjinhos são puras personagens de um filme de horror. Crianças presas num suplício que a sua inocência não consegue explicar.

v

Talvez seja romantismo primário, mas onde os Bracarenses vêem um Bom Jesus de cara lavada vejo eu pedra erodida. Os profetas e as figuras alegóricas nem sempre se conseguiam identificar debaixo dos líquenes neles depositados por um século de humidade minhota. Agora, o granito aparece no seu estéril resplendor fazendo lembrar cimento, e custa-me a crer que esta violenta raspagem não encurte a vida das escultóricas figuras, como o São Longuinhos, rodeado de andaimes, pronto para a lavagem.

À espera do compasso pascal

A sombra do muro estraga o enquadramento. Esta é a versão deste ano. Mais eucarística.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

iii

Segundo José Torres, presidente da Associação de Artesãos do Minho, ou segundo Avelino Lima, jornalista do Diário do Minho, ou segundo o tipógrafo  (ainda há disso?), no "Mercado da Páscoa" a decorrer em Braga até Sábado, há uma oficina do "pão dízimo", que foi o pão comido por Jesus Cristo na última ceia.
Será que um pão dava para dez pessoas?
OK. Vou ser didático. O dízimo era a décima parte do rendimento que os crentes judeus tinham de pagar aos sacerdotes. Regra doutrinal que depois foi praticada, sendo às vezes obrigatória e outras vezes voluntária, dentro de outras denominações religiosas ou como imposto civil  em vários Estados ao longo da História. Nada a ver com o pão ázimo, ou pão sem fermento usado pelos judeus nas suas Festas da Páscoa, de acordo com as indicações de Moisés.
Assim se fala em bom religionês.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Jasão

Um gesto sem alento
Nascido em Si sustenido.
Enfim,
Um barulho consentido pelo vento.
Foi num negro momento perto do fim.
Ali,
Como quem vai a descontento contra si mesmo.
Ali mesmo.
Ao pé da negra mesa composta de teias e poeira.
Foi ali mesmo que pela primeira vez o ouvi
– ao simétrico sibilar do afastamento –
Ao lado do bolor
(bolôr? bolór?),
Que em jeito de massapão cobria o banquete intocado
Onde tinha, aliás, pousado, o cálice de vinho envenenado,
Que, aliás, não bebi...
Às escuras, até parece que ainda reluz.
Mas não. O veneno não ilumina.
É pus à procura da gangrena que o produz.
Não o bebi. Olhei apenas.
Sobre a poeira, uma cruz difusa de rubra projecção.
O caldo infuso de uma semente
Com parecenças a dente-de-leão.
Nessa mesma mesa, veladamente nupcial, onde me deste a salvação
Embrulhada na gaze imarcescente da traição,
Encontrei-te, pois, junto do fim,
No reflexo vermelho
Do primeiro encontro.
Não julgues que, quando viste as velas ao longe,
Era eu a governar o barco.
Não o julgues.
Estava aqui, abaixo do nível das águas
Que,
Por salgadas,
Julgávamos lágrimas quando,
Também,
Julgávamos que éramos nós quem provocava as ondas.
Estava aqui.
A povoar o chão de salitre.
Estava aqui.
Quando era ao teu lado que eu devia ter ficado.
Ao teu lado.
Tocável e oferecido, nem que fosse como essas sementes
Que me salvaram –
– com  parecenças de dente-de-leão:
Não porque voassem,
Mas porque exigissem a carne pútrida de quem as comesse para germinar –
Essas sementes que os teus gestos de bruxedo
Arrancaram do corpo em fruto do mesmo galho em que nasceste.
Essas sementes de repulsa que nasceram do desejo
E da fatalidade fratricida
E infanticida
Em que, por ilusão, me apareceste.

22 de novembro de 2006

Golgotha, de Frank Martin


A Semana Santa em Braga não é feita apenas de procissões para turista ver. Costuma haver também alguns eventos que podem interessar a públicos devotos de outras transcendências. Amanhã, na Sé de Braga, às 21 e 30, será apresentada uma das obras corais mais importantes do século XX. E tão importante quanto pouco tocada (até porque nunca foi editada em forma impressa), pelo que a oportunidade torna-se ainda mais relevante e imperdível. Com a Orquestra Filarmonia das Beiras e o Coro da Sé Catedral do Porto sob a direção do Cónego Ferreira dos Santos, usando para o efeito as partituras originais, alugadas.

Frank Martin, nascido numa família calvinista, escreveu esta obra como reflexo das suas preocupações metafísicas decorrentes de um quarto de século sangrento e absurdo que ecoaram numa alma sensível e religiosa mas incapaz de se rever na totalidade numa religião instituída. Não foi um autor protestante nem católico, mas sempre se mostrou impressionável perante o imaginário da Paixão de Cristo, por ele sentida como a Paixão da própria humanidade, entregue a uma trágica condição de violência e assombro para a qual procurava, ainda, assim, um sentido de redenção. A obra de Rembrandt "As Três Cruzes" serviu-lhe de inspirada epifania, embora já desde os seus 12 anos a "Paixão de São Mateus" de Bach lhe tivesse tocado a alma de forma indelével.

Em termos musicais, Frank Martin foi tão classificável quanto em termos religiosos. O dodecafonismo de Schonberg coexiste de forma estranha, obviamente mística, com o cromatismo das obras corais-sinfónicas de Bach. A música sacra de Frank Martin é intimamente religiosa e o autor preocupava-se com a possível profanação da mesma quando ouvida por ouvidos que nela apenas procurassem o prazer estético. Preocupação algo vã, na minha agnóstica opinião, já que o prazer que um ouvinte ateu ou agnóstico poderá ter de obras suas ou de Bach não será menos espiritual por não ter a referência implícita da crença num Deus específico. Um ateu pode não crer em Deus mas, sendo humano, procura sempre um sentido transcendente nem que seja pela via da Ética. Um ateu pode, e a meu ver é, até mais frequentemente que um crente, tocado pela compaixão em contraste com o interesse intrinsecamente egoísta e tomado pela santa vaidade das almas religiosas. Por isso, se entrar na Sé de Braga amanhã, Frank Martin, se repousar entre os justos (e repousará, certamente, se repouso houver depois da morte) poderá acariciar as frias, violentas e autoritárias paredes do templo com a serenidade e solenidade que merece.


domingo, 29 de março de 2015

Imperfeita eternidade

Túmulo de Dom Duarte e Dona Leonor, Capelas Imperfeitas, Batalha
Até à eternidade, disseram os dois.
À eternidade, onde, perguntaram-se.
Onde fica,
Em que direcção
Em que sentido
Eterno enquanto dura, disse ela
E depois corrigiu
Não
Não quero pensar que pode acabar.
Não pode.
Dá-me  a mão.
Não acaba.
Não.
Pelo menos para nós.
Na verdade, o próprio início
Não foi uma partida em falso.
A eternidade não tem começo.
Não temas.
Dá-me a mão.
Fiquemos a olhar a perfeição das estrelas
Sob abóbadas
Imperfeitas.

A Bela Adormecida

Enquanto ela dormia, nem sempre lhe ficava a velar o sono. Sabia sempre que ainda dormia enquanto percorria cada uma das salas abandonadas onde a única brisa, suspendendo eu a respiração, só podia vir da sua respiração compassada. Creio que só eu conseguiria ver a subtil ondulação dos velhos cortinados.  As janelas estreitas que acompanhavam as salas dispostas em volta de um único claustro desnivelado eram os únicos vultos a acompanhar-me na espiral da nossa solidão. Quando a deixava, no quarto do topo, depois de sentir que os seus olhos amainavam depois da tempestade de algum pesadelo, saía para uma pequena varanda sobre o recinto interior e descia a primeira volta da espiral - o único local onde conseguia olhar o céu e, onde, por vezes, sentia o vento e a chuva que escorria até ao fundo, acompanhando o meu percurso até à entrada da primeira sala, junto à grande porta de entrada, por onde se escoava por um orifício. Por vezes, encostava o ouvido ao pequeno ostíolo e parecia ouvir de novo a respiração dela, sabendo bem que não podia ser, porque se a água desaparecia por ali, não ia, com certeza, em direcção ao quarto mais alto. Mas o ritmo parecia o mesmo. Regular, como um peito cansado e sem esperança. Depois, subia de novo pelas salas que se sucediam em corredor, até à útima, no alto. Deslizava então para o seu lado e parecia que nunca a tinha conhecido de outra forma. Queria que se virasse para mim, me olhasse nos olhos e me contasse o sonho que tivera enquanto me levantara da cama. Mas dos seus sonhos só me falava através da pele que se arrepiava contra o meu ventre frio e pela suspensão imediata da sua respiração, como se estivesse em pânico. Afastando-me, novamente a respiração parecia retomar o seu caminho circular.

Foi num dia em que me preparava de novo para me colocar ao seu lado, observando os movimentos ondulatórios sob os seus olhos fechados, em que a toquei e de novo lhe senti o corpo a retrair-se de frio, que a dor me obrigou a sair, não a fosse acordar e perturbar com as convulsões que me obrigavam a torcer o corpo em todas as direcções. Da varanda sobre o pátio interior só conseguia ver as nuvens, adivinhando chuva, vagamente, muito vagamente, iluminadas pela aurora. Rastejando pelo chão, sentia o meu corpo a rasgar-se contra as irregularidades da pedra do chão. Assim me arrastei até ao fundo da mansão negra, onde, por uma fresta da grande porta, consegui ver os restos abjectos do meu corpo ainda pendentes, como estandartes esfarrapados sobre o corpo desmembrado de um soldado. Acometido por uma febre insuspeitada, que parecia tomar-me conta das veias inflamadas, voltei a subir as salas, na fúria silenciosa com que arrancava, como podia, cada pedaço de carne putrefacta que teimava em crescer insidiosamente em volta de um novelo de angústia e calor crescente. As paredes manchavam-se de sangue escuro, e o chão, atrás de mim, estendia uma passadeira triunfal, escarlate. Quando cheguei junto dela, estava exausto, sujo, escorrendo visco e podridão. A porta da varanda batia com o vento e deixava entrar água em salpicos. Saí e deixei a água escorrer por mim, esperando ficar desfeito, diluído, até desaparecer pelo orifício no fundo do claustro em espiral.

Quando parou de chover, já o sol tinha nascido. Levantei-me, fraco, mas decidido a não descer a espiral húmida. Inverti o percurso habitual e entrei na câmara onde ela continuava o seu sono de décadas. Ajoelhei-me ao seu lado e toquei-lhe na face. Não se retraiu. Como se fosse pele da sua pele. Não era um corpo estranho. Beijei-a. Abriu os olhos, desvelados, escuros, mas brilhantes, ofuscados pela luz que entrava pela porta da varanda. Sorriu, por breves momentos, sobressaltando-se logo a seguir. "O dragão?", perguntou, enquanto se entregava aos meus braços e se preparava para levantar. "Matei-o", disse, apontando para as escamas ensanguentadas que juncavam o caminho através das salas.

Capacidades ou Competências. Eis a questão. Ou não.

Eduardo Jorge Madureira Lopes, no Diário do Minho de hoje, diz: "A iniciativa do Ministério da Educação, diz a Associação [de Professores de Português], visa substituir o conceito de "competências" pelo de "capacidades". Aquilo que nas almas comuns, apenas suscitará indiferença, indigna uma dirigente da associação, Filomena Viegas, que explica: "Eu tenho a capacidade de andar porque não sou coxa. É inato. Eu falo porque adquiri e treinei essa competência." O resultado não mudaria substancialmente se tivesse dito "Eu tenho a capacidade de falar porque não sou muda. É inato. Eu ando porque adquiri e treinei essa competência". Mas Filomena Viegas garante que "esta mudança de paradigma terá consequências nos resultados, já que a oralidade, a escrita ou a leitura são competências, não capacidades."

A discussão sobre a terminologia a utilizar nos documentos que orientam o currículo nacional é tão fútil quanto interessante do ponto de vista político. Para a prática dos professores tanto faz que chamem "objetivos" ou "metas educativas", "competências" ou "capacidades" àquilo que se ensina/aprende. Para os professores há, contudo, um grande senão que é ter de reformular toda a montanha de papelada que supostamente orienta a prática do professor em cada escola específica. Supostamente, porque essa papelada, que devia ser única a nível nacional, e que apenas deveria originar nova documentação no caso de existir alguma adaptação relevante ao nível de cada estabelecimento de ensino, não serve para nada a não ser para ocupar professores picuinhas, que em vez de prepararem aulas e trabalharem efetivamente com alunos preferem, ou masoquistamente a isso se resignam, a passar documentos a pente fino, substituindo competências por capacidades ou vice-versa. É um facto que os professores que a isso se dedicam costumam ser bons professores, mas isso é um mero sintoma colateral do sentido de missão de profissionais dedicados a uma prática profissional de solidão e eremitismo. Mexe-se e remexe-se em documentos estéreis da mesma forma que um ermitão passa as contas do rosário, em interminável maceração da carne para disciplina do espírito. Pouco interessa a quem ensina, se aquilo que ensina são competências ou capacidades. Na verdade, para além do exemplo apresentado por Eduardo Jorge Madureira Lopes no texto citado, as palavras "capacidade" e "competência" referem-se à mesma coisa, em planos temporais diferentes. Capacidade é aquilo de que se é capaz. Ensina-se de acordo com as capacidades dos alunos. Em princípio, não vou ensinar o teorema de Pitágoras a uma criança de 6 anos porque ela não tem essa capacidade, mas essa capacidade ou falta dela decorre das competências que a criança já tem. Ao contrário do que diz Filomena Viegas, não vai haver, à conta desta mudança terminológica, qualquer tipo de mudança de paradigma - mas há uma mudança política que interessa analisar se quisermos compreender como as palavras são utilizadas como estandartes políticos. Para uma certa esquerda teórica e ociosa, é preferível "competências", porque assim se valoriza aquilo que o aluno já aprendeu. Para uma certa direita não menos teórica e ociosa (apenas disfarçada de vigor guerreiro), é preferível "capacidades" porque, supostamente, foca o professor naquilo que há para fazer. E há, então, consequências, especialmente na avaliação dos alunos, já que se avalia o que o aluno não aprendeu e, desse modo, empurra-se o aluno para o "chumbo", enquanto que os paladinos das "competências" se focam naquilo que o aluno aprendeu (nem que seja quase coisa nenhuma) e por isso se empurra o aluno para o ano letivo seguinte, porque aprender, aprende-se sempre qualquer coisa, inflacionando o sucesso estatístico dos alunos. Não há qualquer mudança de paradigma com a mudança terminológica, mas há sempre uma mudança de orientação que, contudo, não se resume à substituição de uma palavra por outra. Repare-se, contudo, que nem subliminarmente esta mensagem passa para os agentes educativos. Tanto professores como alunos, como encarregados de educação são totalmente imunes ao valor ideológico desta ou daquela palavra em documentos que ninguém lê, a não ser por passatempo. As pessoas querem pragmatismo, não teoria. E transparência. Mas com estas discussões estéreis se vão mantendo os cérebros dos professores ocupados, não na busca de soluções, mas na busca de problemas onde eles não deviam existir. Quanto à transparência, fica para outras núpcias. Tanto a esquerda como com a direita seguem caminhos tendentes à parvoíce e à manipulação dos resultados. Mas neste vai e vem ideológico, quem se lixa é o professor. Com a esquerda no poder, é desvalorizado enquanto avaliador, obrigando-se às passagens administrativas dos alunos. Toda a gente passa e, com isso, a autoridade do professor é abalada, porque ao aluno médio só interessa passar, e muito encarregado de educação também pouco mais se importa para além disso. O professor tenta ensinar, mas a apetência pela aprendizagem é nenhuma. Com a direita, a autoridade do professor é, sem dúvida, valorizada (e quem o diz é uma pessoa de esquerda) - e isso é bom. Mas é valorizada apenas a autoridade em relação aos alunos. Em relação à tutela, o professor passa a ser um mero técnico cujo verdadeiro trabalho é absolutamente desvalorizado por um Ministério que pede excelência nos resultados mensuráveis, retirando qualquer valor ao trabalho humano, fazendo comparações onde elas não podem existir, de modo a cumprir a sua agenda de privatização do ensino e precarização das carreiras dos professores.

Discutir se é competência ou se é capacidade é irrelevante. A guerra que se esconde atrás destas palavrinhas, porém, não é.

Sobre a Prosopobibliofobia

Prosopobibliofobia é a aversão profunda às redes sociais e, em particular, ao Facebook. O prosopobibliófobo recusa-se a encarneirar com gente que, muito egipciamente, venera gatos e faz festas ao diabo da estupidez. Assim é, de facto. O Facebook alargou os horizontes da partilha da estupidez e das vaidades vãs. Mas culpar o Facebook é destituído de sentido porque o problema está nas pessoas. Problema que já existia, mantendo-me dentro apenas dos limites nacionais, quando não havia mais que dois canais de uma televisão que, na altura, era do melhor que havia, comparando com a esterqueira que já se via fora de portas. Os portugueses entretinham-se com programas de qualidade. Viam filmes de jeito à quarta feira e comentavam-nos no dia seguinte com o padeiro. No segundo canal havia dança, ópera e filmes franceses da Nouvelle Vague. Havia pouco que ler. Por isso, lia-se o que havia, desde os livros da Enid Blyton aos pequenos folhetos do Apostolado da Oração. As pessoas entretinham-se com o que havia. E havia coisas boas. Mas a escolha era determinada pela própria limitação do campo de escolhas, reduzido a quase nada. As redes sociais são uma consequência inevitável do alargamento da capacidade tecnológica de comunicação entre seres humanos. Com um campo alargado de escolhas, cada indivíduo define-se, nas redes sociais, em função dos outros. Em função das partilhas e dos gostos. Nunca, como hoje, é possível categorizar os grupos sociais, que sempre existiram, camuflados numa aparência de unanimismo totalitário. Mas, desta paisagem humana ressalta também a complexidade das relações estabelecidas por um mesmo indivíduo. A exibição dessa informação causa um horror compreensível entre aqueles que temem a perda da pouca liberdade que ainda tínhamos, a devassa, por parte de organizações estatais, políticas, policiais e empresariais à intimidade de cada um. Mas o prosopobibliófobo esquece que essa devassa é já a estrutura básica da sociedade que começa agora a despontar. E que, a não ser que uma catástrofe de proporções bíblico-dantescas acabe com toda esta estrutura de informação avassaladora, estamos inevitavelmente e suavemente escravizados por ela. Fenómenos nascidos das redes sociais mostram, porém, que os indivíduos podem também utilizar esta subjugação para pôr em causa as estruturas do poder totalitário dos estados onde vivem. A ditadura do proletariado nunca viu um dia a nascer e, provavelmente, nunca verá. Mas a ditadura do prosopobibliófilo, o utilizador militante das redes sociais, é já uma realidade porque as próprias corporações que poderão utilizar as redes sociais para controlar o género humano são compostas e dirigidas por utilizadores que também usam estas redes sociais. Por isso, são influenciados nas suas decisões também pelo seu próprio comportamento individual. Tudo isto é monstruoso, mas é também humano. Genuinamente humano. Tão humano que pode bem considerar-se que não houve momento na história humana em que a liberdade individual tenha coexistido de forma tão pacífica e democrática com o controlo totalitário dos centros decisores do poder económico, político e judicial. Há uma democracia por osmose, em que os ditadores são movidos pelas tendências da opinião pública, de uma forma que nem nos sonhos mais delirantes do senhor Lynch (tenha ele sido William ou Charles) poderia ser concretizada. Há um poder ilusório das massas, é verdade. Mas a ilusão nunca foi tão real. Tudo isto é monstruoso, mas inevitável. É  um poder descontrolado e acéfalo, tentacular, efémero, simultaneamente caótico e organizado. E o prosopobibliófobo tem medo desta estrutura atmosférica nebulosa, tão previsível como o comportamento do clima. Um vídeo de gatinhos a brincar pode mudar o rumo dos acontecimentos como as asas das borboletas da teoria do caos jamais conseguiria mudar, de um modo tão rastreável quanto fugidio. E o prosopobibliófobo tem medo. E com razão. Mas não pode fugir à influência deste monstro. Mesmo fugindo dele, não se inscrevendo com um perfil formal no Facebook, comenta o que é comentado no Facebook, e o seu comentário é devorado por esta máquina, e assimilado ao seu esquema totalitário. O prosopobibliófobo julga que está fora, mas está lá. É tão carneirinho manso quanto os outros.

Donald A. Norman, em "The Invisible Computer" faz uma lista: Thomas Edison desprezou o rádio por não ter valor comercial; a Western Union desprezou o telefone porque este nunca seria mais "que um brinquedo"; Thomas J. Watson Sr., fundador e diretor da IBM desprezou o computador(?!) e a Kodak desprezou a fotocopiadora Xerox. As mentes iluminadas de cada geração têm, curiosamente, aversão à disrupção tecnológica e subavaliam o seu poder de modificação do comportamento humano. Agora resta a questão: os novos comportamentos são melhores? Não, não são. Mas são piores? Também não são. A comunidade humana é o que é, e qualquer juízo de valor é destituído de outra qualquer validade moral para além da que domina internamente cada grupo social. As mentiras, as falácias, a retórica política, todas continuam o caminho que começaram a trilhar desde que nasceram as primeiras religiões, as primeiras cidades, as primeiras estruturas políticas. Tudo adaptado a uma população crescente e insuportável, tanto na burrice como na criatividade. O prosopobibliófobo é apenas um misantropo que nega a si mesmo, ilusoriamente, a liberdade de participar diretamente no curso da História. E a História, meus amigos, está hoje no Facebook. Quer queiram, quer não.

sábado, 28 de março de 2015

Juncus trifidus

Com a mesma densidade
Dos caminhos que me levam
Até ti.

Com esta mesma verdade
Dos desejos que se elevam
Até ti.

Salva me

Esta só expressão,
Segue o meu corpo e flutua:
Nua,
Sobre a escuridão,
No correr dos nossos lençóis
E no leito do meu curso
De onde sobe em suspensão
E em mudo discurso.

E o lodo a meus pés
Já se entrega à morte.

13 de junho de 2006

Photossintética

Juntas no mistério
Água, luz e CO2
E, depois,
Como serpente emplumada,
Uma lágrima de nada
Contendo o que em cima existe
Na profunda claridade
Dos olhos de Deus
E o que em baixo desiste
Sob a conversão forçada
À paternidade
Dos deuses alados
Mortos noutra solidão.
Juntas no mistério
Tanto nuvens como pedras.
E no cemitério
Daqueles que não nasceram,
Sepulturas por abrir
Igualam-se em inquietude
Ao sossego manso
Da eternidade
Do ventre da Virgem.

Khayyam

Ergue-te, não durmas mais
Porque o efémero onde segues
Desemboca na Eternidade
De um doce sono.

Ergue-te,
Não chores se não és dono do jogo,
mas o Céu.
Ergue-te e ignora
Os lances celestiais que te deslocam.
Ignora o destino e ergue-te.
Não durmas mais.
O saco vazio do nada
Espera as peças dispensáveis
Ao recreio do Céu.

Ergue-te.
Ignora.
Não chores.

Brassica oleracea

Sei que o primeiro homem couve
Não se incomodava
Nada, em passear na brisa
Sem enxotar as lagartas,
Verdes e aveludadas,
Que lhe subiam aos ombros,
Por glaucas calçadas,
Segregando-lhe o pecado
Do fruto negado
Que há em desfolhar-se.
Foi por isso que floriu.
E perdeu a inocência,
A verde inocência,
Sem abdicar da esperança
De, ainda assim, renascer
Em cada semente negra.
Na mortal inflorescência,
Festejou então
A singela e branca dor
De se ser sempre o primeiro.

Oryza sativa

Em cada bago de arroz há uma lágrima.
E sendo a lágrima a mais poética
E lírica das secreções – em princípio, e sem indecências,
Em cada bago de arroz há uma rima em branco
E no prato, uma sentença.
Não há no arroz servido nenhuma indiferença
Ao franco sentimento de quem o come.
Que quem come arroz nota perfeitamente,
Em cada bago, como é concreta
A secreta dor da lama onde nasceu –
O arroz, e eu – nós todos, já agora.

Em cada bago de arroz há uma lágrima
Arrancada à casca escura e dura
Dos olhos que se recusam a chorar.

Mas é evitado.
Em cada bago de arroz,
Podes escrevê-lo
– Ainda que nem tenha por grande hábito comê-lo –
Em cada bago de arroz há uma lágrima.
Nascida e proibida de germinar.
É por isso que
Em cada bago de arroz há uma lágrima
Por chorar.

Mas em cada lágrima que me serves,
Perfumando as horas em que as choras
Com as marcas escuras que se desenham
Em arabescos de tristeza
Na tua face, há sementes
E flores escondidas no seu secreto embrião.
Em cada bago de lágrima
Descascado da casca onde te encerrei,
Eu sei,
Há uma semente
– A única semente –
Capaz de criar raízes no meu corpo
Com a violenta ternura da tua voz.
Porque entre nós,
Podes escrevê-lo
– Ainda que nem tenha tido por grande hábito comê-lo, –
Estará sempre pendente o beijo
Que falta dar.

Nerium oleandrum

Vi almas penadas a voar
e lanças espetadas nas estrelas
Em grupos de três, a sangrar...
Vi pétalas de lividez
Em grupos de cinco, a gangrenar...
Vi nos sonhos de quem morre
Aquilo que a vida enterra.
Vi as hastes vegetais irrompendo da terra parindo
Aloendros brancos
Símbolos eróticos da seiva
Da noite
E da morte.
Ouvi o sussuro da calmaria
E os passos de quem colheu o silêncio branco
Das flores que oferecem o doce odor do sono eterno.
Ouvi o sussurro da calmaria
E na vida que irrompe da terra parindo
Cheirei
Os alandros brancos
Brancos loendros
Aloendros brancos
Oleandros
Em grupos de três
Almas penadas a voar
Colhidas e escondidas na cabeceira de quem não quer acordar.

sexta-feira, 27 de março de 2015

ii

- Se for rapaz vai chamar-se Saddam.
- Se for menina... vai ser Gomorra.

Fauno e menina


Trago a embriagez de frutos por fermentar,
E a suave doçura do mel nos meus braços.
Trago a luz do sol nos meus cabelos baços.
E muito mais do que queres desejar.
Não sei que desejo é este,  de me dar,
E me oferecer em cada bago que trago,
pronto a fecundar os teus lábios com graínhas,
Quando temes cada um dos meus passos
E foges, com asco, dos meus abraços,
Correndo por florestas queimadas,
descansando em margens desviadas,
E dormindo sem saudades minhas.

Senhora do Ó

Saberia Maria, escrava do desejo divino,
O que significava o Ó?
E Job? Saberia, no seu exaltado hino
Ao perfeito círculo do mundo,
Que a auréola de um sacro destino
Pousava num corpo, imundo
De redondas chagas?
Saberia Maria, que no olhar profundo
Do filho que escapara às adagas
Cravadas nos inocentes,
Se reflectiam as fragas
Das tentações ingentes
Que assaltam quem tudo tem?
Saberia Ana  como seriam diferentes
Os ós que semearia Além,
Daqueles que semeou cá?
Saberia Maria o valor do A?

Suicídio nas águas



Nas águas onde Ofélia flutua
E Virgínia desce,
Anju avança, a caminho da plácida anulação da dor.

Onde as flores se despedaçam lentamente
Em pétalas manchadas de limo verde,
Ofélia flutua e Virgínia desce.

Anju avança entre as ervas altas coroadas de neve e algodão.
Onde um barco vacila,
Encalhado nos cabelos das fadas,
Que todos os dias morrem
Pela descrença,
Dois amantes baloiçam sobre o espelho baço do nevoeiro
E descobrem no abraço da morte
Que o rio apenas dissolve as mágoas
Nas lágrimas da própria Terra….

Ofélia flutua
Como mais uma flor arrancada à terra
E sem outras raízes que não o ventre esquecido de sua mãe.

Virgínia desce
E ancora no lodo das vozes.
Anju avança
Ofélia flutua
Virgínia desce
No ventre esquecido das mães que nunca foram.

Abraão olhando as estrelas

São incontáveis como as estrelas,
As estradas e as pedras,
As alheiras
E as fogueiras.

Incontáveis as gerações
Que viram Um
Na promessa de muitos...

Avaros das suas recordações
Incontáveis
Registadas
No ter e haver
Do destino comum
Da senda dos exércitos e nações.

Porque são incontáveis os caminhos,
Os quadrantes e pergaminhos
Onde os compassos riscaram,
Na cabala das costas
E Oceanos,
A única rota que resta
Para dar paz aos nossos anos.