domingo, 3 de maio de 2015

É por isso que tenho medo

Corre pela Internet, a seguinte citação, ora atribuída à pena de Shakespeare, ora aos charros do Bob Marley. Ora, nem a um nem a outro pertencem estas linhas muito prosaicas e de pouca elegância poética, embora com um fundo aforístico que faz pensar em poesia asiática. O texto, em português do Brasil, tem esta versão:


Você diz que ama a chuva,
Mas você abre seu guarda-chuva quando chove.
Você diz que ama o sol,
Mas você procura um ponto de sombra quando o sol brilha.
Você diz que ama o vento,
Mas você fecha as janelas quando o vento sopra.
É por isso que eu tenho medo.
Você também diz que me ama.


Em português de Portugal reza:

Tu dizes que amas a chuva,
Mas abres o guarda-chuva quando chove.
Tu dizes que amas o Sol,
Mas procuras uma sombra quando ele brilha.
Tu dizes que amas o vento,
Mas fechas as janelas quando ele sopra.
É por isso que estou preocupado,
Tu disseste que me AMAS.


O texto em Inglês:

“You say you love rain, 
But you use an umbrella to walk under it. 
You say you love sun, 
But you seek shelter when it is shining. 
You say you love wind, 
But when it comes you close your windows. 
So that's why I'm scared 
When you say you love me.”


Em francês, também corre uma outra versão:

"Tu dis que tu aimes la pluie,
Mais tu ouvres ton parapluie quand il pleut. 
Tu dis que tu aimes le soleil,
Mais tu cherches l'ombre quand il brille. 
Tu dis que tu aimes le vent,
Mais tu fermes ta fenêtre quand il souffle. 
C'est pourquoi j'ai peur
Lorsque tu dis que tu m'aimes."

E em castelhano:

Dices que amas la lluvia,
Pero abres tu paraguas cuando llueve
Dices que amas el sol,
Pero buscas una esquina con sombra cuando el sol brilla
Dices que amas el viento,
Pero cierras tu ventana cuando la brisa sopla.
Por eso temo
Cuando me dices que también me amas"


Para ajudar à confusão, há três (ou quatro, ou, quem, sabe, mais...) textos semelhantes, atribuídos a Jean Cocteau, a Sacha Guitry e a Jacques Prévert:

Tu dis que tu aimes le poisson,
Et tu leurs coupes la tête. 
Tu dis que tu aimes les fleurs,
Et tu leurs coupes la queue. 
Tu dis que tu m'aimes...
Ça m'inquiéte!


Dizes que amas os peixes,
Mas cortas-lhes a cabeça.
Dizes que amas as flores,
Mas corta-las pelo caule.
Dizes que me amas...
Isso inquieta-me.
(atribuído a Guitry)

Tu dis que tu aimes les fleurs,
Tu les coupes.
Tu dis que tu aimes les poissons,
Tu les manges.
Tu dis que tu aimes les oiseaux,
Tu les mets en cage.
Quand tu me dis "Je t'aime",
J'ai peur...

Dizes que amas as flores,
Mas corta-las.
Dizes que amas os peixes,
Mas come-los.
Dizes que amas os pássaros,
E fecha-los em gaiolas.
Quando dizes "Eu amo-te",
Tenho medo...
 (atribuído a Prévert)

Outro ainda, atribuído a Prévert:

Tu dis que tu aimes les fleurs
Et tu leur coupes la queue
Tu dis que tu aimes le vent
Et tu fermes la fênetre
Tu dis que tu aimes les escargots
Et tu les plonges dans l’eau bouillante
Quand tu dis que tu m’aimes
Ma chérie, j’ai peur.


Dizes que amas as flores
E cortas-lhes o caule
Dizes que amas o vento
E fechas a janela
Dizes que amas os caracóis
E mergulha-los em água a ferver
Quando, dizes, que me amas,
Minha querida, tenho medo.

Finalmente:

Tu dis que tu aimes les fleurs
Et tu leur coupes la queue,
Tu dis que tu aimes les chiens
Et tu leurmets une laisse,
Tu dis que tu aimes les oiseaux
Et tu les mets en cage,
Tu dis que tu m'aimes
Alors moi j'ai peur.


Dizes que amas as flores
E cortas-lhes o caule,
Dizes que amas  os cães
E prende-los a uma trela.
Dizes que amas os pássaros
E fecha-los em gaiolas,
Dizes que me amas,
Por isso tenho medo.
(atribuído a Cocteau)

A ideia de que é uma citação de Bob Marley tem origem numa canção cantada sabe-se lá por quem, mas que se decidiu atribuir a Bob Marley. Note-se, de facto, que o conceito subjacente ao texto não condiz em nada com a filosofia de Marley, incapaz de ver medo ou sinais de traição em manifestações amorosas. Há, contudo quem refira que, algures num filme não identificado e na "intro" também não identificada de uma não identificada canção, Marley diz estas tão desconcertantes palavras, sendo ele quem era.

Ora, há sempre alguém que se dê ao trabalho de fazer arqueologia internética Nos comentários deste post, entre algumas melgas que repetem que é Bob Marley, desenrola-se um diálogo interessante que parece reportar a origem do texto à Turquia. O texto parece seguir as linhas mestras da poesia folclórica turca e, pelo que aprece, é da autoria de um elusivo poeta turco que daria pelo nome de Qyazzirah Syeikh Ariffin. Sem certezas, contudo. Pouco há sobre este autor. Nem uma linha biográfica. Nada. Talvez a ele volte mais tarde.