segunda-feira, 30 de março de 2015

Jasão

Um gesto sem alento
Nascido em Si sustenido.
Enfim,
Um barulho consentido pelo vento.
Foi num negro momento perto do fim.
Ali,
Como quem vai a descontento contra si mesmo.
Ali mesmo.
Ao pé da negra mesa composta de teias e poeira.
Foi ali mesmo que pela primeira vez o ouvi
– ao simétrico sibilar do afastamento –
Ao lado do bolor
(bolôr? bolór?),
Que em jeito de massapão cobria o banquete intocado
Onde tinha, aliás, pousado, o cálice de vinho envenenado,
Que, aliás, não bebi...
Às escuras, até parece que ainda reluz.
Mas não. O veneno não ilumina.
É pus à procura da gangrena que o produz.
Não o bebi. Olhei apenas.
Sobre a poeira, uma cruz difusa de rubra projecção.
O caldo infuso de uma semente
Com parecenças a dente-de-leão.
Nessa mesma mesa, veladamente nupcial, onde me deste a salvação
Embrulhada na gaze imarcescente da traição,
Encontrei-te, pois, junto do fim,
No reflexo vermelho
Do primeiro encontro.
Não julgues que, quando viste as velas ao longe,
Era eu a governar o barco.
Não o julgues.
Estava aqui, abaixo do nível das águas
Que,
Por salgadas,
Julgávamos lágrimas quando,
Também,
Julgávamos que éramos nós quem provocava as ondas.
Estava aqui.
A povoar o chão de salitre.
Estava aqui.
Quando era ao teu lado que eu devia ter ficado.
Ao teu lado.
Tocável e oferecido, nem que fosse como essas sementes
Que me salvaram –
– com  parecenças de dente-de-leão:
Não porque voassem,
Mas porque exigissem a carne pútrida de quem as comesse para germinar –
Essas sementes que os teus gestos de bruxedo
Arrancaram do corpo em fruto do mesmo galho em que nasceste.
Essas sementes de repulsa que nasceram do desejo
E da fatalidade fratricida
E infanticida
Em que, por ilusão, me apareceste.

22 de novembro de 2006

Golgotha, de Frank Martin


A Semana Santa em Braga não é feita apenas de procissões para turista ver. Costuma haver também alguns eventos que podem interessar a públicos devotos de outras transcendências. Amanhã, na Sé de Braga, às 21 e 30, será apresentada uma das obras corais mais importantes do século XX. E tão importante quanto pouco tocada (até porque nunca foi editada em forma impressa), pelo que a oportunidade torna-se ainda mais relevante e imperdível. Com a Orquestra Filarmonia das Beiras e o Coro da Sé Catedral do Porto sob a direção do Cónego Ferreira dos Santos, usando para o efeito as partituras originais, alugadas.

Frank Martin, nascido numa família calvinista, escreveu esta obra como reflexo das suas preocupações metafísicas decorrentes de um quarto de século sangrento e absurdo que ecoaram numa alma sensível e religiosa mas incapaz de se rever na totalidade numa religião instituída. Não foi um autor protestante nem católico, mas sempre se mostrou impressionável perante o imaginário da Paixão de Cristo, por ele sentida como a Paixão da própria humanidade, entregue a uma trágica condição de violência e assombro para a qual procurava, ainda, assim, um sentido de redenção. A obra de Rembrandt "As Três Cruzes" serviu-lhe de inspirada epifania, embora já desde os seus 12 anos a "Paixão de São Mateus" de Bach lhe tivesse tocado a alma de forma indelével.

Em termos musicais, Frank Martin foi tão classificável quanto em termos religiosos. O dodecafonismo de Schonberg coexiste de forma estranha, obviamente mística, com o cromatismo das obras corais-sinfónicas de Bach. A música sacra de Frank Martin é intimamente religiosa e o autor preocupava-se com a possível profanação da mesma quando ouvida por ouvidos que nela apenas procurassem o prazer estético. Preocupação algo vã, na minha agnóstica opinião, já que o prazer que um ouvinte ateu ou agnóstico poderá ter de obras suas ou de Bach não será menos espiritual por não ter a referência implícita da crença num Deus específico. Um ateu pode não crer em Deus mas, sendo humano, procura sempre um sentido transcendente nem que seja pela via da Ética. Um ateu pode, e a meu ver é, até mais frequentemente que um crente, tocado pela compaixão em contraste com o interesse intrinsecamente egoísta e tomado pela santa vaidade das almas religiosas. Por isso, se entrar na Sé de Braga amanhã, Frank Martin, se repousar entre os justos (e repousará, certamente, se repouso houver depois da morte) poderá acariciar as frias, violentas e autoritárias paredes do templo com a serenidade e solenidade que merece.


domingo, 29 de março de 2015

Imperfeita eternidade

Túmulo de Dom Duarte e Dona Leonor, Capelas Imperfeitas, Batalha
Até à eternidade, disseram os dois.
À eternidade, onde, perguntaram-se.
Onde fica,
Em que direcção
Em que sentido
Eterno enquanto dura, disse ela
E depois corrigiu
Não
Não quero pensar que pode acabar.
Não pode.
Dá-me  a mão.
Não acaba.
Não.
Pelo menos para nós.
Na verdade, o próprio início
Não foi uma partida em falso.
A eternidade não tem começo.
Não temas.
Dá-me a mão.
Fiquemos a olhar a perfeição das estrelas
Sob abóbadas
Imperfeitas.

A Bela Adormecida

Enquanto ela dormia, nem sempre lhe ficava a velar o sono. Sabia sempre que ainda dormia enquanto percorria cada uma das salas abandonadas onde a única brisa, suspendendo eu a respiração, só podia vir da sua respiração compassada. Creio que só eu conseguiria ver a subtil ondulação dos velhos cortinados.  As janelas estreitas que acompanhavam as salas dispostas em volta de um único claustro desnivelado eram os únicos vultos a acompanhar-me na espiral da nossa solidão. Quando a deixava, no quarto do topo, depois de sentir que os seus olhos amainavam depois da tempestade de algum pesadelo, saía para uma pequena varanda sobre o recinto interior e descia a primeira volta da espiral - o único local onde conseguia olhar o céu e, onde, por vezes, sentia o vento e a chuva que escorria até ao fundo, acompanhando o meu percurso até à entrada da primeira sala, junto à grande porta de entrada, por onde se escoava por um orifício. Por vezes, encostava o ouvido ao pequeno ostíolo e parecia ouvir de novo a respiração dela, sabendo bem que não podia ser, porque se a água desaparecia por ali, não ia, com certeza, em direcção ao quarto mais alto. Mas o ritmo parecia o mesmo. Regular, como um peito cansado e sem esperança. Depois, subia de novo pelas salas que se sucediam em corredor, até à útima, no alto. Deslizava então para o seu lado e parecia que nunca a tinha conhecido de outra forma. Queria que se virasse para mim, me olhasse nos olhos e me contasse o sonho que tivera enquanto me levantara da cama. Mas dos seus sonhos só me falava através da pele que se arrepiava contra o meu ventre frio e pela suspensão imediata da sua respiração, como se estivesse em pânico. Afastando-me, novamente a respiração parecia retomar o seu caminho circular.

Foi num dia em que me preparava de novo para me colocar ao seu lado, observando os movimentos ondulatórios sob os seus olhos fechados, em que a toquei e de novo lhe senti o corpo a retrair-se de frio, que a dor me obrigou a sair, não a fosse acordar e perturbar com as convulsões que me obrigavam a torcer o corpo em todas as direcções. Da varanda sobre o pátio interior só conseguia ver as nuvens, adivinhando chuva, vagamente, muito vagamente, iluminadas pela aurora. Rastejando pelo chão, sentia o meu corpo a rasgar-se contra as irregularidades da pedra do chão. Assim me arrastei até ao fundo da mansão negra, onde, por uma fresta da grande porta, consegui ver os restos abjectos do meu corpo ainda pendentes, como estandartes esfarrapados sobre o corpo desmembrado de um soldado. Acometido por uma febre insuspeitada, que parecia tomar-me conta das veias inflamadas, voltei a subir as salas, na fúria silenciosa com que arrancava, como podia, cada pedaço de carne putrefacta que teimava em crescer insidiosamente em volta de um novelo de angústia e calor crescente. As paredes manchavam-se de sangue escuro, e o chão, atrás de mim, estendia uma passadeira triunfal, escarlate. Quando cheguei junto dela, estava exausto, sujo, escorrendo visco e podridão. A porta da varanda batia com o vento e deixava entrar água em salpicos. Saí e deixei a água escorrer por mim, esperando ficar desfeito, diluído, até desaparecer pelo orifício no fundo do claustro em espiral.

Quando parou de chover, já o sol tinha nascido. Levantei-me, fraco, mas decidido a não descer a espiral húmida. Inverti o percurso habitual e entrei na câmara onde ela continuava o seu sono de décadas. Ajoelhei-me ao seu lado e toquei-lhe na face. Não se retraiu. Como se fosse pele da sua pele. Não era um corpo estranho. Beijei-a. Abriu os olhos, desvelados, escuros, mas brilhantes, ofuscados pela luz que entrava pela porta da varanda. Sorriu, por breves momentos, sobressaltando-se logo a seguir. "O dragão?", perguntou, enquanto se entregava aos meus braços e se preparava para levantar. "Matei-o", disse, apontando para as escamas ensanguentadas que juncavam o caminho através das salas.

Capacidades ou Competências. Eis a questão. Ou não.

Eduardo Jorge Madureira Lopes, no Diário do Minho de hoje, diz: "A iniciativa do Ministério da Educação, diz a Associação [de Professores de Português], visa substituir o conceito de "competências" pelo de "capacidades". Aquilo que nas almas comuns, apenas suscitará indiferença, indigna uma dirigente da associação, Filomena Viegas, que explica: "Eu tenho a capacidade de andar porque não sou coxa. É inato. Eu falo porque adquiri e treinei essa competência." O resultado não mudaria substancialmente se tivesse dito "Eu tenho a capacidade de falar porque não sou muda. É inato. Eu ando porque adquiri e treinei essa competência". Mas Filomena Viegas garante que "esta mudança de paradigma terá consequências nos resultados, já que a oralidade, a escrita ou a leitura são competências, não capacidades."

A discussão sobre a terminologia a utilizar nos documentos que orientam o currículo nacional é tão fútil quanto interessante do ponto de vista político. Para a prática dos professores tanto faz que chamem "objetivos" ou "metas educativas", "competências" ou "capacidades" àquilo que se ensina/aprende. Para os professores há, contudo, um grande senão que é ter de reformular toda a montanha de papelada que supostamente orienta a prática do professor em cada escola específica. Supostamente, porque essa papelada, que devia ser única a nível nacional, e que apenas deveria originar nova documentação no caso de existir alguma adaptação relevante ao nível de cada estabelecimento de ensino, não serve para nada a não ser para ocupar professores picuinhas, que em vez de prepararem aulas e trabalharem efetivamente com alunos preferem, ou masoquistamente a isso se resignam, a passar documentos a pente fino, substituindo competências por capacidades ou vice-versa. É um facto que os professores que a isso se dedicam costumam ser bons professores, mas isso é um mero sintoma colateral do sentido de missão de profissionais dedicados a uma prática profissional de solidão e eremitismo. Mexe-se e remexe-se em documentos estéreis da mesma forma que um ermitão passa as contas do rosário, em interminável maceração da carne para disciplina do espírito. Pouco interessa a quem ensina, se aquilo que ensina são competências ou capacidades. Na verdade, para além do exemplo apresentado por Eduardo Jorge Madureira Lopes no texto citado, as palavras "capacidade" e "competência" referem-se à mesma coisa, em planos temporais diferentes. Capacidade é aquilo de que se é capaz. Ensina-se de acordo com as capacidades dos alunos. Em princípio, não vou ensinar o teorema de Pitágoras a uma criança de 6 anos porque ela não tem essa capacidade, mas essa capacidade ou falta dela decorre das competências que a criança já tem. Ao contrário do que diz Filomena Viegas, não vai haver, à conta desta mudança terminológica, qualquer tipo de mudança de paradigma - mas há uma mudança política que interessa analisar se quisermos compreender como as palavras são utilizadas como estandartes políticos. Para uma certa esquerda teórica e ociosa, é preferível "competências", porque assim se valoriza aquilo que o aluno já aprendeu. Para uma certa direita não menos teórica e ociosa (apenas disfarçada de vigor guerreiro), é preferível "capacidades" porque, supostamente, foca o professor naquilo que há para fazer. E há, então, consequências, especialmente na avaliação dos alunos, já que se avalia o que o aluno não aprendeu e, desse modo, empurra-se o aluno para o "chumbo", enquanto que os paladinos das "competências" se focam naquilo que o aluno aprendeu (nem que seja quase coisa nenhuma) e por isso se empurra o aluno para o ano letivo seguinte, porque aprender, aprende-se sempre qualquer coisa, inflacionando o sucesso estatístico dos alunos. Não há qualquer mudança de paradigma com a mudança terminológica, mas há sempre uma mudança de orientação que, contudo, não se resume à substituição de uma palavra por outra. Repare-se, contudo, que nem subliminarmente esta mensagem passa para os agentes educativos. Tanto professores como alunos, como encarregados de educação são totalmente imunes ao valor ideológico desta ou daquela palavra em documentos que ninguém lê, a não ser por passatempo. As pessoas querem pragmatismo, não teoria. E transparência. Mas com estas discussões estéreis se vão mantendo os cérebros dos professores ocupados, não na busca de soluções, mas na busca de problemas onde eles não deviam existir. Quanto à transparência, fica para outras núpcias. Tanto a esquerda como com a direita seguem caminhos tendentes à parvoíce e à manipulação dos resultados. Mas neste vai e vem ideológico, quem se lixa é o professor. Com a esquerda no poder, é desvalorizado enquanto avaliador, obrigando-se às passagens administrativas dos alunos. Toda a gente passa e, com isso, a autoridade do professor é abalada, porque ao aluno médio só interessa passar, e muito encarregado de educação também pouco mais se importa para além disso. O professor tenta ensinar, mas a apetência pela aprendizagem é nenhuma. Com a direita, a autoridade do professor é, sem dúvida, valorizada (e quem o diz é uma pessoa de esquerda) - e isso é bom. Mas é valorizada apenas a autoridade em relação aos alunos. Em relação à tutela, o professor passa a ser um mero técnico cujo verdadeiro trabalho é absolutamente desvalorizado por um Ministério que pede excelência nos resultados mensuráveis, retirando qualquer valor ao trabalho humano, fazendo comparações onde elas não podem existir, de modo a cumprir a sua agenda de privatização do ensino e precarização das carreiras dos professores.

Discutir se é competência ou se é capacidade é irrelevante. A guerra que se esconde atrás destas palavrinhas, porém, não é.

Sobre a Prosopobibliofobia

Prosopobibliofobia é a aversão profunda às redes sociais e, em particular, ao Facebook. O prosopobibliófobo recusa-se a encarneirar com gente que, muito egipciamente, venera gatos e faz festas ao diabo da estupidez. Assim é, de facto. O Facebook alargou os horizontes da partilha da estupidez e das vaidades vãs. Mas culpar o Facebook é destituído de sentido porque o problema está nas pessoas. Problema que já existia, mantendo-me dentro apenas dos limites nacionais, quando não havia mais que dois canais de uma televisão que, na altura, era do melhor que havia, comparando com a esterqueira que já se via fora de portas. Os portugueses entretinham-se com programas de qualidade. Viam filmes de jeito à quarta feira e comentavam-nos no dia seguinte com o padeiro. No segundo canal havia dança, ópera e filmes franceses da Nouvelle Vague. Havia pouco que ler. Por isso, lia-se o que havia, desde os livros da Enid Blyton aos pequenos folhetos do Apostolado da Oração. As pessoas entretinham-se com o que havia. E havia coisas boas. Mas a escolha era determinada pela própria limitação do campo de escolhas, reduzido a quase nada. As redes sociais são uma consequência inevitável do alargamento da capacidade tecnológica de comunicação entre seres humanos. Com um campo alargado de escolhas, cada indivíduo define-se, nas redes sociais, em função dos outros. Em função das partilhas e dos gostos. Nunca, como hoje, é possível categorizar os grupos sociais, que sempre existiram, camuflados numa aparência de unanimismo totalitário. Mas, desta paisagem humana ressalta também a complexidade das relações estabelecidas por um mesmo indivíduo. A exibição dessa informação causa um horror compreensível entre aqueles que temem a perda da pouca liberdade que ainda tínhamos, a devassa, por parte de organizações estatais, políticas, policiais e empresariais à intimidade de cada um. Mas o prosopobibliófobo esquece que essa devassa é já a estrutura básica da sociedade que começa agora a despontar. E que, a não ser que uma catástrofe de proporções bíblico-dantescas acabe com toda esta estrutura de informação avassaladora, estamos inevitavelmente e suavemente escravizados por ela. Fenómenos nascidos das redes sociais mostram, porém, que os indivíduos podem também utilizar esta subjugação para pôr em causa as estruturas do poder totalitário dos estados onde vivem. A ditadura do proletariado nunca viu um dia a nascer e, provavelmente, nunca verá. Mas a ditadura do prosopobibliófilo, o utilizador militante das redes sociais, é já uma realidade porque as próprias corporações que poderão utilizar as redes sociais para controlar o género humano são compostas e dirigidas por utilizadores que também usam estas redes sociais. Por isso, são influenciados nas suas decisões também pelo seu próprio comportamento individual. Tudo isto é monstruoso, mas é também humano. Genuinamente humano. Tão humano que pode bem considerar-se que não houve momento na história humana em que a liberdade individual tenha coexistido de forma tão pacífica e democrática com o controlo totalitário dos centros decisores do poder económico, político e judicial. Há uma democracia por osmose, em que os ditadores são movidos pelas tendências da opinião pública, de uma forma que nem nos sonhos mais delirantes do senhor Lynch (tenha ele sido William ou Charles) poderia ser concretizada. Há um poder ilusório das massas, é verdade. Mas a ilusão nunca foi tão real. Tudo isto é monstruoso, mas inevitável. É  um poder descontrolado e acéfalo, tentacular, efémero, simultaneamente caótico e organizado. E o prosopobibliófobo tem medo desta estrutura atmosférica nebulosa, tão previsível como o comportamento do clima. Um vídeo de gatinhos a brincar pode mudar o rumo dos acontecimentos como as asas das borboletas da teoria do caos jamais conseguiria mudar, de um modo tão rastreável quanto fugidio. E o prosopobibliófobo tem medo. E com razão. Mas não pode fugir à influência deste monstro. Mesmo fugindo dele, não se inscrevendo com um perfil formal no Facebook, comenta o que é comentado no Facebook, e o seu comentário é devorado por esta máquina, e assimilado ao seu esquema totalitário. O prosopobibliófobo julga que está fora, mas está lá. É tão carneirinho manso quanto os outros.

Donald A. Norman, em "The Invisible Computer" faz uma lista: Thomas Edison desprezou o rádio por não ter valor comercial; a Western Union desprezou o telefone porque este nunca seria mais "que um brinquedo"; Thomas J. Watson Sr., fundador e diretor da IBM desprezou o computador(?!) e a Kodak desprezou a fotocopiadora Xerox. As mentes iluminadas de cada geração têm, curiosamente, aversão à disrupção tecnológica e subavaliam o seu poder de modificação do comportamento humano. Agora resta a questão: os novos comportamentos são melhores? Não, não são. Mas são piores? Também não são. A comunidade humana é o que é, e qualquer juízo de valor é destituído de outra qualquer validade moral para além da que domina internamente cada grupo social. As mentiras, as falácias, a retórica política, todas continuam o caminho que começaram a trilhar desde que nasceram as primeiras religiões, as primeiras cidades, as primeiras estruturas políticas. Tudo adaptado a uma população crescente e insuportável, tanto na burrice como na criatividade. O prosopobibliófobo é apenas um misantropo que nega a si mesmo, ilusoriamente, a liberdade de participar diretamente no curso da História. E a História, meus amigos, está hoje no Facebook. Quer queiram, quer não.

sábado, 28 de março de 2015

Juncus trifidus

Com a mesma densidade
Dos caminhos que me levam
Até ti.

Com esta mesma verdade
Dos desejos que se elevam
Até ti.

Salva me

Esta só expressão,
Segue o meu corpo e flutua:
Nua,
Sobre a escuridão,
No correr dos nossos lençóis
E no leito do meu curso
De onde sobe em suspensão
E em mudo discurso.

E o lodo a meus pés
Já se entrega à morte.

13 de junho de 2006

Photossintética

Juntas no mistério
Água, luz e CO2
E, depois,
Como serpente emplumada,
Uma lágrima de nada
Contendo o que em cima existe
Na profunda claridade
Dos olhos de Deus
E o que em baixo desiste
Sob a conversão forçada
À paternidade
Dos deuses alados
Mortos noutra solidão.
Juntas no mistério
Tanto nuvens como pedras.
E no cemitério
Daqueles que não nasceram,
Sepulturas por abrir
Igualam-se em inquietude
Ao sossego manso
Da eternidade
Do ventre da Virgem.

Khayyam

Ergue-te, não durmas mais
Porque o efémero onde segues
Desemboca na Eternidade
De um doce sono.

Ergue-te,
Não chores se não és dono do jogo,
mas o Céu.
Ergue-te e ignora
Os lances celestiais que te deslocam.
Ignora o destino e ergue-te.
Não durmas mais.
O saco vazio do nada
Espera as peças dispensáveis
Ao recreio do Céu.

Ergue-te.
Ignora.
Não chores.

Brassica oleracea

Sei que o primeiro homem couve
Não se incomodava
Nada, em passear na brisa
Sem enxotar as lagartas,
Verdes e aveludadas,
Que lhe subiam aos ombros,
Por glaucas calçadas,
Segregando-lhe o pecado
Do fruto negado
Que há em desfolhar-se.
Foi por isso que floriu.
E perdeu a inocência,
A verde inocência,
Sem abdicar da esperança
De, ainda assim, renascer
Em cada semente negra.
Na mortal inflorescência,
Festejou então
A singela e branca dor
De se ser sempre o primeiro.

Oryza sativa

Em cada bago de arroz há uma lágrima.
E sendo a lágrima a mais poética
E lírica das secreções – em princípio, e sem indecências,
Em cada bago de arroz há uma rima em branco
E no prato, uma sentença.
Não há no arroz servido nenhuma indiferença
Ao franco sentimento de quem o come.
Que quem come arroz nota perfeitamente,
Em cada bago, como é concreta
A secreta dor da lama onde nasceu –
O arroz, e eu – nós todos, já agora.

Em cada bago de arroz há uma lágrima
Arrancada à casca escura e dura
Dos olhos que se recusam a chorar.

Mas é evitado.
Em cada bago de arroz,
Podes escrevê-lo
– Ainda que nem tenha por grande hábito comê-lo –
Em cada bago de arroz há uma lágrima.
Nascida e proibida de germinar.
É por isso que
Em cada bago de arroz há uma lágrima
Por chorar.

Mas em cada lágrima que me serves,
Perfumando as horas em que as choras
Com as marcas escuras que se desenham
Em arabescos de tristeza
Na tua face, há sementes
E flores escondidas no seu secreto embrião.
Em cada bago de lágrima
Descascado da casca onde te encerrei,
Eu sei,
Há uma semente
– A única semente –
Capaz de criar raízes no meu corpo
Com a violenta ternura da tua voz.
Porque entre nós,
Podes escrevê-lo
– Ainda que nem tenha tido por grande hábito comê-lo, –
Estará sempre pendente o beijo
Que falta dar.

Nerium oleandrum

Vi almas penadas a voar
e lanças espetadas nas estrelas
Em grupos de três, a sangrar...
Vi pétalas de lividez
Em grupos de cinco, a gangrenar...
Vi nos sonhos de quem morre
Aquilo que a vida enterra.
Vi as hastes vegetais irrompendo da terra parindo
Aloendros brancos
Símbolos eróticos da seiva
Da noite
E da morte.
Ouvi o sussuro da calmaria
E os passos de quem colheu o silêncio branco
Das flores que oferecem o doce odor do sono eterno.
Ouvi o sussurro da calmaria
E na vida que irrompe da terra parindo
Cheirei
Os alandros brancos
Brancos loendros
Aloendros brancos
Oleandros
Em grupos de três
Almas penadas a voar
Colhidas e escondidas na cabeceira de quem não quer acordar.

sexta-feira, 27 de março de 2015

ii

- Se for rapaz vai chamar-se Saddam.
- Se for menina... vai ser Gomorra.

Fauno e menina


Trago a embriagez de frutos por fermentar,
E a suave doçura do mel nos meus braços.
Trago a luz do sol nos meus cabelos baços.
E muito mais do que queres desejar.
Não sei que desejo é este,  de me dar,
E me oferecer em cada bago que trago,
pronto a fecundar os teus lábios com graínhas,
Quando temes cada um dos meus passos
E foges, com asco, dos meus abraços,
Correndo por florestas queimadas,
descansando em margens desviadas,
E dormindo sem saudades minhas.

Senhora do Ó

Saberia Maria, escrava do desejo divino,
O que significava o Ó?
E Job? Saberia, no seu exaltado hino
Ao perfeito círculo do mundo,
Que a auréola de um sacro destino
Pousava num corpo, imundo
De redondas chagas?
Saberia Maria, que no olhar profundo
Do filho que escapara às adagas
Cravadas nos inocentes,
Se reflectiam as fragas
Das tentações ingentes
Que assaltam quem tudo tem?
Saberia Ana  como seriam diferentes
Os ós que semearia Além,
Daqueles que semeou cá?
Saberia Maria o valor do A?

Suicídio nas águas



Nas águas onde Ofélia flutua
E Virgínia desce,
Anju avança, a caminho da plácida anulação da dor.

Onde as flores se despedaçam lentamente
Em pétalas manchadas de limo verde,
Ofélia flutua e Virgínia desce.

Anju avança entre as ervas altas coroadas de neve e algodão.
Onde um barco vacila,
Encalhado nos cabelos das fadas,
Que todos os dias morrem
Pela descrença,
Dois amantes baloiçam sobre o espelho baço do nevoeiro
E descobrem no abraço da morte
Que o rio apenas dissolve as mágoas
Nas lágrimas da própria Terra….

Ofélia flutua
Como mais uma flor arrancada à terra
E sem outras raízes que não o ventre esquecido de sua mãe.

Virgínia desce
E ancora no lodo das vozes.
Anju avança
Ofélia flutua
Virgínia desce
No ventre esquecido das mães que nunca foram.

Abraão olhando as estrelas

São incontáveis como as estrelas,
As estradas e as pedras,
As alheiras
E as fogueiras.

Incontáveis as gerações
Que viram Um
Na promessa de muitos...

Avaros das suas recordações
Incontáveis
Registadas
No ter e haver
Do destino comum
Da senda dos exércitos e nações.

Porque são incontáveis os caminhos,
Os quadrantes e pergaminhos
Onde os compassos riscaram,
Na cabala das costas
E Oceanos,
A única rota que resta
Para dar paz aos nossos anos.

Parar a morte



Porque não pude parar a Morte
Ela, gentilmente, parou para mim.

(Emily Dickinson)
  
A leve e alegre carruagem da morte
Dá pinotes ao meio dia...
Nem um negrume, nem triste sorte:
Apenas sol e calmaria.

A leve e alegre carruagem da sepultura
vem forrada de cetins
e ornada de querubins
dourados em moldura...

Pouco interessa o desdém,
Também,
De quem a vê passar.
A alegre carruagem
Da derradeira viagem,
Agora mesmo, está a parar.

Allegretto

Irrompeu do caos
O silêncio
E fez-se a maresia, o instante
E a solidão.
Irrompeu da espuma a tristeza,
A lágrima, a nuvem e a primeira imagem da nudez.
Irrompeu do caos
O silêncio: a primeira imagem da surdez desejada.
Irrompeu do caos e da lama
O silêncio purificante de uma chama, e o desejo
Da brutal carícia das coisas impossíveis,
Sobre a laje fria dos banquetes irreversíveis dos abutres.

Foi na secura resignada dos meus olhos
Que as lágrimas se espelharam,
Derramando-se no cântico lago do mundo.

Ao inclinar a cabeça servil
Soltaram-se, em gemidos, os cabelos da escravatura.
E abriu-se o caminho da tua viral doçura
Dos abismos sob as estradas e caminhos
Dos nossos infantis amplexos.
E irrompeu do silêncio a oração, então esquecida,
Dos abraços reflexos.

Descerrou-se o mármore.

E acolheu-se o silêncio nas palavras
Nuvem, água e maresia.

Descerrou-se o mármore
E entrou em trabalho de parto a poesia.

Tese - antítese e síntese (vai dar tudo ao mesmo)

Nos olhos do desgosto
os anjos
Deus
Os Deuses
O Diabo a sete.
Nos braços da claridade
a música gravada em pedra
a um tacto mudo.

Não sei o que há na música e na poesia. 
Não sei para que serve. Abomino a sua serventia,
a mensagem, o disse que não disse, a ambiguidade.
Abomino a antiguidade.
Em vez de gritos, mais vale morrer calado.
Para quê tentar Deus com orações
quando é o silêncio que sobe em agrado a um nariz infecto?
São apressadas conclusões, não?
Silogismos de pé cortado. Seja.
Queimemos Santo Agostinho na sua piedade arrependida e pornográfica
para que veja
que a Igreja
Maniqueísta que recusou
é a única válida na Arte
pela parte de quem a usou.

18 de julho de 2004

Sagração da Primavera

Com que palavras queres que t' o diga?
Melhor o dizem as árvores em flor
Ao circular segundos de calor
Na seiva que o meu coração abriga.

Vê que sou uma Primavera em dor
Ciosa do gérmen de cada espiga
Que o cio das cigarras em cantiga
Converte nos ecos do meu amor.

Sente nos amentilhos de algodão
Os primeiros calores de Verão
Desejando o teu corpo de mulher.

Sente no meu silêncio uma canção:
Meus dedos desfiando em oração
As pétalas brancas de um malmequer...

Carícia

Como um silêncio que voa
Sobre o azul cinzento
Das nossas manhãs
De rosas em coroa,
Num adagietto lento,
As carícias das nossas mãos
Não se exprime num olhar.
Ainda que nos nossos olhos
Repouse, apenas,
Puro,
O cintilar das esferas
De um acto simples,
E puro, de amar.

quinta-feira, 26 de março de 2015

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John Allen, jornalista do Boston Globe conta que, tendo encontrado num restaurante de Roma um cardeal sobejamente conhecido pela opulência do seu estilo de vestir, trajado com uma trapinhos mais singelos, lhe perguntou a razão da mudança. A resposta foi cínica mas, curiosamente , é facilmente entendida como um sinal de mudança nos hábitos da Igreja. Talvez por ingenuidade. Talvez por cegueira. Talvez porque quem perdoa este género de humor não é, provavelmente, melhor que este cardeal que, com um crucifixo de ouro talvez menor, manterá, também com certeza, exemplares mais pesados nas gavetas que terá de carregar no Inferno, de acordo com a doutrina em que supostamente acredita. Respondeu que com este papa, o simples era o novo chique. Chique. O diabo veste Prada, dizem. Mas também se veste de luz. São as escrituras que o dizem.